Texto de Lara Mather
A 20a edição do Festival IndieLisboa terminou e dela saíram muitos filmes que nos deixam a pensar, tocando em temáticas por vezes pessoais e pouco faladas, este ano o maior festival de Cinema do país apresentou uma programação diversificada e abrangente.
O filme de abertura, “Something you said last night” de Luis de Filippis contou com a presença da realizadora trans e de imediato ditou o tom desta edição do Indie com esta longa-metragem que retrata uma personagem transgênero em que essa condição não é necessariamente o foco principal da história. É um filme maioritariamente filmado com câmara à mão e com uma equipa predominantemente de mulheres trans, sobre uma família que vai de férias em que o conflito não está direcionado ao trauma associado à identidade de género.
“Rainha Diaba” realizado pelo brasileiro António Carlos Fontoura outro dos grandes destaques deste festival, retrata o tema da identidade de género mas feito nos anos 70. O filme foi restaurado e exibido na secção Director’s Cut do Festival. Visto pela primeira vez por um novo público, o filme retrata os anos 60 no Rio de Janeiro e a Rainha Diaba, protagonizada por Milton Gonçalves, uma figura marginal que nessa época controlou o tráfico de droga na cidade toda a partir de um quarto. É um filme sobre crime, mundo underground da prostituição, da droga dentro da comunidade queer. As cores e os figurinos são maravilhosos, autoria de Ângelo de Aquino, assim como a maquilhagem da autoria de Carlos Prieto, tornam este mundo ilegal, colorido.
Uma agradável surpresa foi o filme “Sick of Myself”, do realizador norueguês Kristoffer Borgli, que encheu as salas rapidamente. Trata-se de uma comédia desconcertante que fez o público soltar gargalhadas onde se conta a história de Signe, uma mentirosa compulsiva que com ciúmes do namorado decide absurdamente tomar uma droga, que sabe que lhe irá provocar efeitos secundários físicos graves. Um filme que explora em extremo a cultura narcisista de uma forma perturbadora e hilariante. Kristine Kujath Thorp, que protagoniza Signe, é cativante do início ao fim.
“Pearl” do realizador Ti West também é um filme desconcertante, com os seus momentos cômicos, foi sensacional. Estreou em Portugal no Cinema São Jorge na primeira noite do Festival e é a prequela do filme “X”, protagonizado brilhantemente por Mia Goth. Retrata a personagem Pearl quando era mais nova, num ambiente campestre e com grandes sonhos de ser uma estrela. Filmado em película, o filme mistura o terror com a estética de musicais antigos como “O Feiticeiro de Oz” pelas cores vibrantes e altamente contrastadas. Este filme tal como “Sick of Myself” ” fizeram parte da secção Boca do Inferno do festival.
“Saint Omer”, foi um filme muito aguardado, da realizadora francesa Alice Diop é a primeira longa-metragem de ficção da documentarista. O drama jurídico é baseado num julgamento de infanticídio que a própria assistiu em França em 2016. Rama, protagonizada por Kayije Kagame, é uma professora de literatura e escritora de romances que viaja até Saint Omer onde assiste ao julgamento de Laurence Coly, uma estudante imigrante senegalense acusada de matar a sua filha de 15 meses.
É um filme com uma temática pesada e com muitos monólogos muito bem entregues pelo elenco inteiro. Recebeu menção especial no Prémio Silvestre para Melhor Longa-Metragem nesta edição do festival onde ganhou o filme “Trenque Lauquen” de Laura Citarella.
A presença portuguesa no festival
De realçar a imensidão do emergente talento nacional, nomes apresentados pela primeira vez este ano no IndieLisboa, com a mostra de diversas curtas-metragens sobre as mais variadas temáticas.
A secção Novíssimos, separada em 3 sessões, contou com 18 curtas em que se destacou “A minha raiva é underground” de Francisca Antunes, um filme documental em que Francisca faz uma performance desenhando num papel no chão de um estúdio um mapa da cidade. Francisca narra a experiência de quando foi violada e de como se reconstruiu usando a cidade como o centro de tudo. Um filme forte e empoderador que venceu o Prémio Novíssimos, o grande vencedor desta secção do Festival e o Prémio MUTIM.
“Dias de Cama” de Tatiana Ramos que venceu o Prémio Novo Talento The Yellow Color e o Prémio Escolas é um filme com uma estética e estrutura inovadora montado por Madalena Fragoso que explora o luto familiar e o prazer sexual entre duas jovens com a ação passada no Verão em que sentimos cada gota de suor e em que a brisa quente é transmissível pelo ecrã. É um filme belo e diferente, com uma excelente fotografia de Afonso Mota.
Curtas-metragens nesta secção que não foram premiadas mas que se destacaram foram “Please make it work” do realizador Daniel Soares, sobre uma empregada de limpezas que limpa uma casa alugada, espécie de airbnb, no meio das montanhas e a sua filha fica no carro. O filme todo é filmado num só plano afastado em que vemos a ação toda de longe. Este filme é interessante e único pela abordagem da técnica e forma como foi filmado e o sound design, crucial, feito brilhantemente pela Inês Adriana.
“Nervo Morto” de Margarida P Fonseca é um filme experimental e documental em que a realizadora nos mostra sonoramente o que é ouvir apenas do ouvido esquerdo. Sem dúvida uma experiência sonora para quem esteve na sala, Margarida apresenta-nos sons muito altos e por vezes desconcertantes em que nos colocamos nos seus sapatos e durante 10 minutos percebemos o que a realizadora experiência diariamente.
“Sagrada Família” do realizador Diogo S. Figueira, uma curta-metragem de ficção que mistura os temas de fé e maternidade através da relação entre uma freira excomungada e a filha que agora grávida e adulta sente que não teve a mãe enquanto crescia. Um filme com vários momentos de alívio cómico, um filme reconfortante que nos faz questionar aquilo em que acreditamos no que toca à maternidade e à fé mas de uma forma leve.
“Memórias de Pau-Preto e Marfim” da realizadora Inês Costa é um documentário que mistura animação e imagens de arquivo e conta a história dos avós de Inês durante o período colonial em Portugal e em Angola. Para além da animação, a própria montagem do filme feita pela Inês e pelo Thiago Liberdade está incrível, assim como o som de João Beleza que é um elemento crucial de ligação entre a animação e a montagem do filme. O espetador sente-se imerso na história e apesar de estarem a ser relatados momentos infelizes e de muita perda, a animação desanuvia.
“Os Tempos Conturbados” de Carlos Tavares Pedro é um filme documental que conta a história da independência de Angola pela voz de Filomena Lopes. Carlos usa ao longo do filme arquivos pessoais da sua família com uma montagem interessante de André Rodrigues em que nos são mostradas notícias da época e documentos oficiais.
“Memórias de Pau-Preto e Marfim” e “Os Tempos Conturbados” destacam-se pela abordagem da temática que muitas vezes é apenas contada por uma lente que não é universal e estes filmes mostram outras perspetivas e realidades igualmente importantes de serem faladas.
Na Competição Internacional de Longas-Metragens o Grande Prémio de Longa-Metragem Cidade de Lisboa foi para o filme “Safe Place” de Juraj Lerotić, na Competição Internacional de Curtas-Metragens o Prémio Melhor Curta de Animação foi para “Hotel Kalura” de Sophie Koko Gate, o Prémio Melhor Curta de Documentário foi para “La mécanique des fluides” de Gala Hernández Lopez, o Prémio Melhor Curta de Ficção foi para “Howling” de Aya Kawazoe, na Competição Nacional o Prémio para Melhor Longa-Metragem Portuguesa foi para “Mal Viver | Viver Mal” de João Canijo que também ganhou menção especial no Prémio Universidades, em que “Índia” de Telmo Churro foi vencedor, e o Prémio Melhor Curta-Metragem Portuguesa foi para “Dildotectónica” de Tomás Paula Marques.
O Prémio IndieMusic Bandida do Pomar – ex-aequos foi para os filmes “Miúcha, a Voz da Bossa Nova” de Liliane Mutti & Daniel Zarvos e “The Elephant 6 Recording Co.” de C.B. Stockfleth. Recebeu menção especial o filme “Even Hell has its Heroes” de Clyde Petersen.
Texto Lara Mather