Texto por Manuela Marques @ma_da_faca
Fotografia Estelle Valente @estellevalentephotography
“Abro os olhos, olho pro Céu. Mais um dia que Deus me deu.” _ é a sequência de palavras, proferida por Gio Lourenço, que marca o início formal do espetáculo «Boca Fala Tropa», que em franca verdade principia muito antes desse momento, uma vez que, quando o público entra, tanto o Gio (ator) como Xullaji (músico) já se encontram no palco a afinar os seus instrumentos, em jeito de recepção.
«Boca Fala Tropa» relata uma viagem com demais viagens, vividas e sonhadas, que desenham a geografia do Corpo-Gio. Numa biografia cuja jornada começa em Luanda (Angola) mas que se conta-escreve no Bairro do Fim do Mundo, em Cascais (Portugal). Nesta peça, Gio convida a audiência a testemunhar uma incursão pessoal que ele se propõe a (re)fazer para ativar a memória a fim de preencher lugares de vazio e de indefinição.
Em cena, o ator e o músico protagonizam o diálogo que, pontuado por alguma improvisação, compõe o universo visual e musical de «Boca Fala Tropa», claramente influenciado pela estética do Kuduro1. Foi através do Kuduro que Gio manteve viva a ligação com as suas raízes e desperto o pulsar de parte da sua identidade cultural, entretanto exilada por motivo bélico. Na adolescência torna-se kudurista e, num ato de resistência, devolve ao Corpo o seu lugar de fala – dança – , a demanda que narra a sua história no ritmo vincado de movimentos partidos e precisos.
De Angola trouxe de recordação, gravada no seu rosto, a cicatriz do nariz partido, fruto de uma das poucas lembranças que consegue aceder. É em Portugal [no Fim do Mundo] que assiste à Guerra2 de Angola, numa experiência distanciada e averbada pelo olhar dos adultos, familiares e amigos, que coabitavam o bairro.
Com trabalho e resiliência Gio fez-se homem e, hoje, faz-se pessoa num espaço seu por direito, sem necessidade de o conquistar-delimitar, porque se transforma continuamente como por matriz se define o «movimento», no seu caso traçado com linhas de diáspora.
Em «Boca Fala Tropa» é-se invadido pela vibração do Kuduro presente na música, ao vivo, de Xullaji e na interpretação enérgica de Gio ao dançar as palavras, ideias-memórias fragmentadas, que se precipitam da sua boca: Boca (não) Fala Tropa.
A cumplicidade entre ambos é determinante no sucesso-veracidade da proposta artística, ora é a música o gatilho que ativa a coreografia do Corpo, ora é a métrica e a fonética do texto que originam batidas e trechos sonoros que penetram a epiderme.
Esta obra, de cariz autobiográfico, é um rasgo de nobreza e de generosidade onde Gio partilha a sua vivência, resultado de um trânsito interior povoado de questões próprias e sensíveis – das quais só quem viveu tem propriedade para discursar. «Boca Fala Tropa» grita existência, figura uma mensagem política-social, livre de concepções pseudointelectuais e hiperdisruptivas, que desarma convenções erróneas e comove por simplesmente se doar.
«BOCA FALA TROPA», de 24 a 26 Novembro, no SÃO LUIZ (Lisboa) – Alkantara Festival · Direção Artística e Texto GIO LOURENÇO · Dramaturgia e Texto CÁTIA TERRINCA · Apoio à Criação NEUSA TROVOADA e SOFIA BERBERAN · Performers GIO LOURENÇO, XULLAJI e VÂNIA DOUTEL VAZ (em vídeo) · Vídeoartista MICHELLE EISTRUP · Desenho de Som XULLAJI · Desenho de Luz MANUEL ABRANTES · Apoio ao Movimento VÂNIA DOUTEL VAZ, Fogo de Deus · Acompanhamento em Corpo SOFIA NEUPARTH · Cenografia e Figurinos NEUSA TROVOADA · Figurinos do vídeo MAGDA BUCZEK · Figurinista ULLA JENNER · Fotografia SOFIA BERBERAN · Produção executiva PAULO LAGE · Produção MEDUSA MATERIAL · Fotografia de Cena ESTELLE VALENTE
Texto de Manuela Marques para PARQ_77.pdf (parqmag.com)
NOTAS _____________________________________________________
1 O Kuduro, do neologismo “bunda dura”, é um género musical e, sobretudo, de dança que surgiu em Angola, no final dos anos 80, pela fusão de estilos e, segundo os seus embaixadores Nagrelha e Tony Amado, também inspirado por uma cena do filme «O Desafio do Dragão» [da saga Kickboxer] onde, num bar, Van Damme dança movimentos duros e quebrados.
2 A Guerra Civil de Angola teve lugar entre 1975 e 2002, sendo desencadeada no período Pós Guerra Colonial – evento que, também, a impulsionou e responsável por fissuras ainda abertas.