Chegou o verão e com ele veio a terceira edição do Fund Fest, uma série de eventos criados pela artista multi-facetada e ativista Ivvi Romão. Este festival foi criado com o intuito de angariar dinheiro para causas LGBTQIA+, incluindo nestas a cirurgia de redesignação de sexo de Ivvi. Outro dos propósitos do Fund Fest é também trazer para o circuito mainstream artistas queer que ainda se encontram afastados da popularidade, muito devido à marginalidade que lhes é imposta por serem quem são.

O B.leza Clube decidiu convidar o projeto para começar a ser apresentado na sua casa. Ligado à comunidade cabo-verdiana, o próprio nome é uma homenagem ao músico cabo-verdiano Francisco Xavier da Cruz, que era conhecido por Beleza, este clube dá palco a artistas luso-africanos desde a sua génese. Para não fugir à regra, Ivvi convocou os seguintes artistas/projetos para fazer a festa: 67memoriesofu, bbb hairdryer, nëss, SoundPreta, Yizhaq e Izabel Nejur.

67memoriesofu, DJ e producer residente em Lisboa, foi bebendo da cultura underground de Lisboa, Berlim e Rio de Janeiro. Explorando o sampling e a expressão corporal dos corpos em movimento na pista, procura criar sets que induzam estes corpos em trance.

Parq: Das 3 cidades em que residiste, onde foi que sentiste que havia mais liberdade ao nível de orientação e identidade sexual?

67memoriesofu: Tem um artista brasileiro de quem gosto muito, o guerreiro do divino amor, que descreveu o Rio usando uma rosa dos ventos na qual um dos eixos era supermedo->supersexy. Sub-culturas só podem expressar-se conforme o espaço que a dom-cultura deixa, e a cultura queer especialmente acaba sempre por se criar em momentos que existem no máximo e no mínimo deste eixo. Isto para dizer que também tendo grandes liberdades em Berlim e no Rio, os níveis de êxtase e trauma da vida do dia a dia são totalmente diferentes. Lisboa balança entre as duas.

bbb hairdryer é o retrato do queercore português contemporâneo. O seu último trabalho, Kingdom Hearts II Final Mix: pretty generic radio pop with a few fucks and edgelord lyrics, é queer, é punk e descende da internet. Segundo a sinopse do projeto, é fruto de 5 anos de maturação de links de soundcloud, misturados com concertos ao vivo, corações que se partem e colam, gatafunhos em diários e gravações no telemóvel.

Parq: O Punk em Portugal ainda tem uma história bastante violenta, machista e queerfóbica, sentes que projetos como o teu e Vaiapraia podem abrir portas para uma cena de queercore mais forte em Portugal?

bbb hairdryer: Que cena de queercore em Portugal first of all? Tive bastante tempo a ponderar deixar as guitarras de lado porque o punk já me cheirava mal. Se estou a fazer música de guitarras agora não é de todo para abrir portas, muito pelo contrário, é para as fechar. Quero um espaço sem merdas, quero um espaço seguro.

nëss compõe e performa música queer, negra e não-binária. Tendo começado em estúdios caseiros das Mercês, a sua zona de residência, ganhou reconhecimento através das músicas que lançou em 2018 e 2019 pela Troublemaker Records, editora discográfica que dá lugar a pessoas da comunidade BIMPOC LGBTQIA+. Em 2020 abraçou uma onda mais indie e punk, a sua cultura suburbana e periférica e tem berrado as suas verdades em luta duma maior libertação.

Parq Mag: Houve uma grande transformação na sonoridade das tuas músicas de 2019 para 2020. Essa mudança deve-se ao facto de te teres tornado mais independente na produção ou advém de outros motivos?

nëss: O início de eu fazer música e de compor sempre foi junto com a minha guitarra e numa sonoridade mais folk, no entanto, na construção do meu primeiro EP estava me a descobrir musicalmente e tinha chegado a uma altura que sentia que a guitarra não me dava aquilo que eu queria e que de certa maneira, de uma forma insegura e inconsciente, achava que o folk e o indie era genres que uma pessoa racializade aqui em portugal não tinha lugar ou que devia pertencer. Após o EP, fiquei independente na produção e voltei de uma forma natural a agarrar na guitarra e simplesmente sentir o que sentia antes quando comecei a fazer música e dei mais valor à guitarra e apercebi-me que este tipo de sonoridades são sim negres e quis assumir isso. Mal conectei as peças senti-me mais fiel e genuíno. No entanto, eu estou em constante mudança e sei que futuramente vou explorar outros estilos de música. Não gosto de cingir-me apenas a uma coisa.

SoundPreta estreia-se em julho de 2019 na véspera do Dia Internacional da Mulher Afro Latinoamericana e Caribenha e da Diáspora e de Tereza de Benguela, tendo intrinsecamente a resistência e a visibilidade de mulheres negras como mote. Inicialmente era um trio, contudo a vida levou o projeto a ser encabeçado apenas por Lola, que entre o dancehall, o Hip Hop e os demais ritmos dançantes herdeiros da música africana, tem encantado as pistas de Portugal e em breve da Europa. Vai ser uma das artistas presentes no Lisboa Pride 2022, e no próximo mês viaja para os Açores, Paris e Berlim.

Parq Mag: No ano em que SoundPreta surgiu, provavelmente este era o único projeto de mulheres negras a tocar música negra. Com uma pandemia pelo meio, tens vindo a conseguir cada vez mais nome e presença nas pistas dos clubes europeus. Qual tem sido o teu maior estímulo e que conselho darias a mulheres ou pessoas LGBTQIA+ negras para levar avante os seus projetos musicais?

Soundpreta: Meu maior estímulo é acreditar no meu próprio trabalho. O negócio é acreditar naquilo que se faz e se constrói. Mesmo sem ter o trabalho que considere melhor, exclusivo ou super interessante, é importante mostrar e jogar pro mundo, a construção da própria identidade enquanto artista vem com o tempo. Sempre há de haver quem goste e quem não goste.

Em 2017, a cena underground Queer lisboeta começa a ter o nome Yizhaq na boca. Entre os seus DJs sets que revelavam bastante cultura de música eletrónica aos seus programas na Rádio Quântica (Lisboa) e na WIDE Radio (Reino unido), Yizhaq tem sido um militante assíduo da luta pelos direitos LGBTQIA+ na cena. Afirma ter sido influenciado pela diversidade de sons existentes na periferia da capital portuguesa, onde cresceu. Já deixou pegadas em grandes casas ou projetos, como o Boiler Room, o Lux Frágil, o Pérola Negra, ou a Mina/Planeta Manas.

Parq Mag: Foste dos primeiros artistas trans masculinos a surgir na cena underground lisboeta. O que sentes que falta para que os homens trans se sintam seguros e numa posição de igualdade perante aes restantes artistas.

Yizhaq: Sendo dos primeiros artistas trans masculinos a surgir em Lisboa, confesso que ao início foi-me difícil encontrar referências com que me identificasse aqui mas felizmente consegui encontrar pessoas trans e não-bináries a fazer música eletrónica e DJs e ao longo dos anos fui conhecendo cada vez mais pessoas dentro da comunidade queer de Lisboa que também me foram e vão inspirando ao longo do meu percurso, tornou-se menos solitário e felizmente há cada vez mais pessoas trans no meio musical.

Com o passar do meu tempo cá em Lisboa, vi novas festas e eventos a nascer, com curadorias feitas por pessoas queer, mais inclusivas e algumas exclusivamente LGBT que são bastante necessárias nesta cidade e não só, que tentaram romper com programações de espaços mais comerciais que não tiveram a sensibilidade de incluir pessoas LGBT e muitas vezes, mesmo dentro de festas queer, são esquecidas pessoas trans e não-brancas dentro dos cartazes. Há pouco espaço para identidades não-normativas e não é por falta de pessoas, a nossa presença nos espaços independentes e comerciais continua a ser uma luta e continuamos aqui a mostrar que não somos invisíveis e que os line-ups podem não ser cis nem hetero.

Izabel Nejur viaja do Brasil para Portugal em 2018. Performer, usa a sua fluidez como a principal ferramenta na sua multidisciplinaridade. A inquietação é motor para criar, a intuição a sabedoria para inovar. Tem feito trabalhos dentro do cinema, da dança, da performance, da escrita e ainda videoarte DIY. Tem uma licenciatura em Jornalismo e pós graduação em cinema e dança.

Parq Mag: vais apresentar na próxima quinta-feira a performance “Gigantesca”, uma peça produzida de raiz por ti. Qual é o motte por trás deste projeto?

Izabel Nejur: GIGANTESCA é sobre prazer e tem a comida como ferramenta de pesquisa e experimentação. GIGANTESCA não é só uma performance, é um projeto maior em que a performance é uma das possibilidades. Estou sozinha em cena mas, nunca estou sozinha (e nem quero).

Sofia Seixo Garrucho começou a pisar os palcos com apenas 9 anos. Em entrevista ao Rimas e Batidas, afirma ter sido influenciada pelo gosto musical da sua família e deve ao Contrabaixo Bar não só a sua primeira atuação ao vivo, como grande parte do seu conhecimento cultural.

Em 2016 criou o alter-ego ASTREA, aquando a sua descoberta enquanto pessoa trans não-binárie. No seu trabalho enquanto DJ e Producer, tem vindo a explorar sonoridades de Hip Hop, electrónica, jazz, techno, drum and bass, trance e folclore. ASTREA começa a atuar em 2017, a convite de editoras e coletivos como a Alienação, a Gruta ou a ARVI+. Fundou em 2021, com a performer e escritora Kássia Laureano, a Mãe Solteira Records.

Parq Mag: Enquanto pessoa trans não-binárie reconhecide como mulher à nascença, quais foram as maiores afrontas que já sentiste na tua carreira?

ASTREA: Senti mais enquanto estudante do que profissional. Eu era a única pessoa com útero quando estudei Sound Design, levei com imenso mansplaining e quando tinha dúvidas faziam-me sentir ainda mais ignorante do que era, e se eu fui para uma escola estudar uma matéria era porque precisava de ajuda para aprender, caso contrário teria estudado sozinhe. De resto há coisas clássicas, que vêm de casa, passam peles amigues, por pessoas que não me conhecem nem têm qualquer relação comigo até às que têm relações profissionais, como não reconhecerem o meu género, acharem que sou homem ou mulher, e depois casos de manipulação, gaslight e abuso de poder têm sido também frequentes.