Conhecemos Flora Santo quando chegou a Lisboa e se propôs desenvolver alguns artigos para a Parq. Foi uma aproximação curta e desde então não tivemos grandes novidades , até que chegou Vuyazi, a revista que esteve a desenvolver, que felicitamos. Quisemos saber mais sobre essa nova proposta e as novidades que traz para a panorama nacional

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Como surgiu a ideia de fazer a Vuyazi?

Nos últimos anos tenho evoluído no jornalismo e na área de moda, por isso, as revistas têm estado no centro do meu trabalho, procurando analisar os diferentes modelos. Sentia que havia espaço em Portugal para um projeto de revista de moda em formato papel, igual ao que se faz nos outros países, mas feito à nossa maneira, que destacasse as vozes da nova geração do país.

O que quer dizer Vuyazi?

Vuyazi é o nome duma personagem mitológica que descobri no livro Niketche: Uma história de poligamia de Paulina Chiziane. É conhecida como a “princesa insubmissa” que se recusava a obedecer ao marido e ao pai. A Vuyazi é um símbolo de resistência feminina.

Foto de Cristiana Morais

Agora que os meios digitais dominam porque razão fazer uma revista em Papel?

Porque é algo que eu, pessoalmente, adoro comprar e acho que elas estão a ter um comeback. Acho que o formato papel dá outra dimensão às fotos, às ilustrações e aos textos. Ler uma revista acaba por ser um momento de descanso em que se deixa o telemóvel de lado, é um prazer simples. É um conteúdo “lento”, feito para ser apreciado devagar.

Qual é a orientação editorial que queres imprimir?

A Vuyazi é um projeto feminista, focado em dar espaço a grupos, vozes e histórias menos representados. Dito isto, está aberto a toda a gente desde que estejam alinhados com os valores da revista. A revista tem dois pilares: o universo visual, criado pelas fotografias e ilustrações, mas também pelo design único de cada página, que foi feito pela Filipa Mendes (Tropical Papayas). O segundo pilar são os textos: a Vuyazi é um espaço de reflexão sobre temas sociais, e procura analisar esses temas de forma criativa através de artigos mas também de poemas, contos ou outros tipos de ensaios.

Fotografia de Enzo Sinai

Em que se diferencia do restante panorama nacional?

Acho que vem completar o panorama existente, que já tem boas revistas variadas como a Parq, a Solo, a Umbigo, a Betesga, a Gerador… A Vuyazi atualmente é das únicas revistas print feministas em Portugal. Tem uma posição política progressista assumida. E tem um foco na emergência, no mundo alternativo, nas novas vozes de Portugal.

Esta edição é sobre a amizade, porquê esse tema?

Porque é um tema quase obsessivo para mim desde que sou pequena e reparei que, apesar de fazer parte da vida de toda a gente, era pouco valorizado pela sociedade, especialmente em comparação com a relação romântica, e muito pouco estudado pelas ciências sociais.

Acho que as comunidades queer, antirracistas e feministas atuais estão a questionar e a redefinir a forma como nos relacionamos uns com os outros, a hierarquia que damos às nossas relações, e acredito que amizade vai passar a ser um assunto político da maior importância nos próximos anos – também porque os governos estão a dar-se conta de que existe um problema de solidão nas sociedades modernas.

A amizade pode ser estudada de maneiras quase infinitas, com uma perspetiva psicológica, sociológica, artística, histórica… Neste número, temos por exemplo uma ilustração de Carolina Ardente sobre o fim de uma amizade tóxica, cartas de amor escritas por dois grandes amigos, Carlos Pereira e Wilds Gomes, que declaram a sua amizade um ao outro, um excerto de um livro de Kássia Laureano sobre uma amizade intensa entre duas mulheres, um artigo sobre a solidão masculina de Gabriel Santo… E sinto que ainda há muitas coisas para se dizer e partilhar sobre o assunto, por isso nos próximos meses em Paris e Lisboa (e talvez em outras cidades de Portugal), a Vuyazi vai organizar eventos à volta da amizade. A ideia é criar espaços para conversas sobre temas pouco explorados dentro do tema da amizade.

Fotografia de Iza Marques

Tu vens de França , trazes alguma referencias desse meio cultural que te orientaram na realização desta edição

Sim, eu inspirei-me bastante na Censored Magazine, uma revista artística feminista e queer francesa criada por duas irmãs que me deram conselhos preciosos sobre como criar e autoeditar a sua própria revista. Elas fazem um trabalho incrível em termos de design mas também no que toca aos textos que publicam: são contos fantásticos, poemas ou ensaios experimentais que têm uma mensagem política muito forte. Para além da Censored, nos últimos anos em França têm surgido revistas novas mesmo lindas e inovadoras que me inspiraram durante a criação da Vuyazi, como Gaze, Pour Toi, Nombril, La Déferlante, mas usei também como referências revistas mais estabelecidas como a Trax, Vice, Manifesto XXI, Purple ou Novembre.

Achei curioso a ideia de ser uma revista que explora o universo lusofono. O que representa isso para ti nesta edição que acabou de sair?

Esta primeira edição não está particularmente focada em outros países lusófonos mas pode ser algo que passe a acontecer no futuro. No meu ponto de vista, não faria sentido fazer uma revista focada em Portugal sem incluir todas as comunidades lusófonas, que são um elemento central e uma profunda influência na cultura do país. Sendo que a revista é bilingue e vai ser lida no estrangeiro, e vai fazer com que pessoas descubram coisas novas sobre os artistas e as comunidades criativas de Portugal, acho que a minha responsabilidade como editora é dar uma imagem que seja o mais fiel possível à realidade do país e que respeite o impacto de todas as comunidades. Não quero apropriar-me algo que não é meu: no fundo, é apenas sobre dar valor e oferecer flores a quem as merece.

Em que medida o panorama lusofono em Lisboa é uma marca diferenciadora na europa?

Diria que o exemplo mais significativo seria a música. O movimento da batida foi criado por jovens afrodescendentes com raízes nas antigas colónias portuguesas e foi essa a música que pôs Lisboa no mapa da música eletrónica internacional. Acho que as diferentes influências que existem hoje em Lisboa – afrodescendentes, mas também brasileiras e indostânicas –, misturadas com o charme tradicional português da arquitetura, da gastronomia, das paisagens, ofereceram-lhe uma identidade cultural única na Europa.

Já tens a próxima edição prevista? Podes falar do tema e destaques?

Estou a pensar em focar-me no tema da fé. Sinto que com os sintomas da sociedade capitalista – crise ecológica, hiperconsumo, solidão, precaridade – os jovens têm-se aproximado da espiritualidade e da religião, mas com uma perspetiva moderna. Gostava de analisar isto através de reportagens, poemas, contos, ilustrações, fotografias…