Momento Sambado

Filipe Sambado tem um novo disco, uma descoberta com novas experiências naquela forma muito própria de quem sabe comunicar com o mundo através da arte. Quem ouve identifica a diversidade, a honestidade e percebe que acompanhar o percurso deste artista permite viajar por vários universos sem sair do mesmo lugar. Nesta entrevista falámos sobre o seu novo trabalho, o seu percurso, medos, certezas, crenças e tudo aquilo que fazem de Filipe Sambado a pessoa certa, que nos faz pensar sobre a forma de ver o mundo que tanto questionamos..

Parq: O teu percurso começa em 2012 com o EP “Isto Não É Coisa Pra Voltar a Acontecer”. Estamos em 2020, foste convidado para o Festival da Canção e é editado o teu novo álbum de originais “Revezo”. Como é que têm sido estes anos de crescimento?

Filipe Sambado: Tem sido em crescendo. Tem sido um desenvolvimento pessoal e musical, mas faz parte de uma timeline de um filme. Já não tenho bem noção da ordem cronológica das coisas. Comecei a fazer estes trabalhos a solo, fui ganhando alguma confiança e fui crescendo.

P: Qual foi o teu processo de composição/criação para este novo álbum?

FS: Eu fui fazendo logo muitas das canções no final do processo do disco anterior. Já tinha uma grande parte escrita e era sobretudo um trabalho feito á guitarra e voz, com muitas melodias gravadas no telemóvel. Um processo variado que se podia fazer em qualquer sítio. Depois houve uma parte mais parada e naturalmente decidi que ia para estúdio fazer o resto.

P: Quanto tempo demoraste?

FS: O disco demorou menos de dois anos a ser feito, mas o período de estúdio que é a parte mais cansativa demorou cerca de um ano.

Gostava que o disco tivesse saído mais cedo, mas também percebi que era um processo de redescoberta e isso acaba por levar mais tempo, foi um processo mais isolado. Tive o acompanhamento de pessoas que foram trabalhando comigo, que me ajudaram bastante e estavam presentes, mas também havia uma fase em que precisava de estar sozinho. Deparava-me com erros e tentava resolvê-los. Precisava de descobrir a forma para que aquilo resultasse e tinha inúmeras versões das mesmas canções. Há musicas que têm cinco versões diferentes e comecei a perceber que havia alguma transversalidade nos arranjos. Foi preciso fazer o trabalho de pesquisa de tradições, como a música do cancioneiro dos anos sessenta e setenta. Comecei a decidir o que é que queria ouvir enquanto estava a ouvir o disco, comecei a orientar o disco para um sítio. Ele começou a parar aí e eu quis orientá-lo, foi um encontro.

Pretendia que a minha música não fosse só atemporal, mas que fosse um bocado geográfica.

P: Quais são as pessoas e géneros musicais que mais tiveram influência ao longo do teu percurso? E porquê?

FS: A minha música vai um bocado do excesso e da velocidade com que as coisas chegam. Eu vou estando a par das coisas que acontecem e posso estar a ouvir uma música que me leva mais para aqui ou para ali, em determinados momentos. Quando fiz “Isto não é coisa para voltar a acontecer” tinha acabado de descobrir My Blood, por exemplo. Ouvia algum folk tipo Cohen e Dylan, estava a ouvir música que entre si não se relacionava, mas tinha o formato de canção. Houve uma altura em que andei a redescobrir o David Bowie e foi importante o lado mais espalhafatoso da música. Existem sempre bandas que me vão acompanhando, como os Animal Collective. E também estive numa fase em que ouvia muito Ariel Pink. Portanto, não posso escolher só um ou dois estilos. Há uma ligação com o tempo, tem um lado que marca o tempo. Podem-se dizer que são para sempre mas marcam um tempo. E a parte boa de uma coisa ser para sempre é que tem uma carga de nostalgia. Quando ouves e pensas: “Nesta altura isto era feito” e essa é a inscrição temporal importante.

O que faz com que as coisas sejam para sempre, embora o para sempre tenha uma baliza muito concreta. Não há nada que seja para sempre, mas essa sensação de tempo é importante.

P: O álbum “Filipe Sambado & Os Acompanhantes de Luxo”, editado em Abril de 2018 foi aclamado pela crítica e reconhecido como o melhor disco nacional do Ano pela Antena3, Radar, Vodafone FM e foi nomeado para os prémios SPA 2019. Existe aquilo a que se chama de peso da responsabilidade para que este novo álbum seja tão ou mais bem-sucedido?

FS: Não. Senti até mais espaço para trabalhar. Foi o que isto me trouxe acima de tudo. Este reconhecimento da crítica deu-me mais calma para trabalhar. Devido a este reconhecimento tive a oportunidade de trabalhar em mais sítios, permitiu-me deixar o trabalho que tinha para me dedicar só á musica. Portanto, não. Não sinto o peso da responsabilidade. Acho que se as pessoas não gostarem vão ouvir outra coisa. Não vão ficar muito preocupadas se este disco não é assim tão bom como o anterior. Vão virar-se para outro lado e ouvir outra coisa. Para mim é importante sentir que quando acabo um disco é melhor do que o anterior, gosto de sentir isso. A única preocupação será uma autossuficiência monetária, de não poder viver da música e ter de arranjar outro trabalho. Mas se o tiver de voltar a fazer, faço-o. E continuarei a fazer discos, só que com menos frequência.

P: De que forma recebeste/sentiste este convite para o Festival da Canção. E de que forma é que tens preparado, uma vez que certamente irá causar impacto na tua carreira?

FS: Eu estava apreensivo quanto ao convite. Quando medi a importância da minha participação e o que significa a montra do Festival da Canção, não estava confiante. Não sinto que me integre totalmente e não lido bem com a ideia de concurso musical, não gosto da forma como o comportamento social do festival acontece. As pessoas extravasam um bocadinho naquilo que são os seus julgamentos e isso faz-me alguma confusão. Tento ser um bocadinho impermeável a isso, mas acabo por sofrer um bocado e tento distanciar-me. Decidi fazer uma letra para o festival que falasse um pouco sobre esse tema e de todo esse fenómeno em que o festival se insere. Um bocado como um case study em que as pessoas sentem intimidade suficiente para dizerem tudo aquilo que querem, sobre tudo o que é feito e não estão muito preocupadas com o percurso do artista.

P: Aproveitaste esse receio e relutância em participar no festival da canção pelos motivos que mencionaste e escreveste uma canção sobre isso mesmo?

FS: É sentir que a minha resposta está dada antes do problema acontecer e depois claro que percebo que o efeito da canção é mais abrangente do que o festival. É quase global, tal como disse antes, o festival é um case study.

P: Qual foi o momento em que se deu aquele “click” e percebeste que a música se tinha tornado num caso sério?

FS: Eu sempre fui fazendo música na expectativa de que um dia se tornasse algo sério.

A urgência que tenho em fazer canções é por ser uma forma de expressão. A canção é um veículo, não preciso de entrar numa discussão para dizer o que penso. Para mim o privilégio da criação é tu poderes sustentar o que estás a dizer sem entrares em conflito. Aquilo é válido por si e eu sempre senti que a música tinha esse espaço e esse lugar em mim. Fui fazendo sempre com gosto. Claro que sentia sempre que se isto funcionasse enquanto ganha-pão seria um privilégio, mas não foi uma busca. Houveram dois marcos diferentes. Na altura do “Vida salgada”, quando o fui fazer, as decisões que tomei e usar o dinheiro que tinha guardado. Tudo isto para não estar a trabalhar durante algum tempo, para tentar conceber um disco que para mim seria um marco e estaria a destacar o rigor desse trabalho em comparação com os EPs e com as bandas com que tinha trabalhado. A mudança maior é quando percebo que não preciso de trabalhar no que fazia antes e a música passou a ser o meu único trabalho.

P: Um conselho que te tenham dado e que tenha sido importante para ti e para o teu desenvolvimento enquanto artista?

FS: Não me lembro de quase nenhum, normalmente são pessoais e não musicais. Sempre fui um bocado teimoso e quis descobrir muitas das coisas sozinho porque seria mais interessante. Há um lado nisso que funcionou contra mim, muitas vezes. Existe um personagem do livro “Sinais de fogo” do Jorge de Sena, que é um rapaz que não estuda, não lê livros, mas é um grande inventor. Está a par do que os seus colegas de escola estão a fazer e a sua velocidade de aprendizagem é muito próxima da dos seus colegas. Só que ele não estuda e faz experiências sozinho. Ele não se tornou melhor do que os seus colegas, acabou por estar ao mesmo nível. Só que chegou lá de forma diferente, aprendeu da forma que lhe deu mais prazer. Sei que deve ser teimosia da minha parte e o facto de eu não querer mostrar como está mal e tentar fazer bem. Incorro no erro várias vezes antes de mostrar. Sei que podem ser os meus receios e isso pode atrasar a aprendizagem.

P: Erraste ao longo do teu percurso?

FS: Sim, errei. Mas vivo bem com isso, lá que eu não faça mal a ninguém para mim está tudo bem.

P: Sentes que os teus videoclipes têm uma estética que contribuem para a cultura visual, que felizmente tem aumentado em Portugal nos últimos anos?

Antes para fazer um vídeo eram precisos recursos que nunca mais acabavam, hoje em dia consegues fazer um vídeo com menos recursos. Continuas a não conseguir pagar ás pessoas envolvidas e isso é um problema gigante, em termos de sustentabilidade continua a ser zero. Em termos de resultados conseguimos orgulhar-nos um bocadinho mais das coisas.

Acho importante comunicar no vídeo porque é mais um veículo de leitura. Para mim é interessante poder dizer mais alguma coisa e criar texto na imagem. Na minha opinião, o problema da falta de cultura visual deve-se á falta de dinheiro e capacidade de investimento. Tanto dos artistas como das plataformas que apoiam a arte. A democratização da expressão artística vem mais da democratização tecnológica do que do investimento que tem sido feito. As camaras fotográficas agora filmam, hoje em dia com uma placa de som gravamos um disco, já não precisamos de ir para estúdio, por exemplo.

P: A tua imagem e a forma como te apresentas ao publico é uma forma natural de expressão ou uma afirmação enquanto artista?

FS: As duas porque estão ligadas ao meu crescimento de forma cronológica. Tem a ver com os meus medos e libertar-me dos meus medos, de conclusões que pudesse ter. Pintar as unhas para mim foi uma primeira descoberta de expressão e depois com o tempo fui crescendo e tenho tido cada vez mais à vontade. Descobrir isso foi importante.

P: Falando nisso houve uma vez que deste um concerto e estavas todo nu. Porquê? Não me digas que não tinhas nada para vestir…

FS: Nesse concerto havia um manequim vestido com a minha roupa, eu estava a dar os primeiros passos no meu à vontade e na minha caminhada de expressão. Era a apresentação de um disco que ainda não tinha saído e pensei que seria interessante dar um concerto despido de julgamentos e aberto a interpretações. Apresentei musicas que nunca tinham sido ouvidas, só a guitarra e voz, tudo no seu formato mais despido e por isso decidi apresentar-me sem roupa.

P: Com que artista nacional gostavas de trabalhar, fazer um dueto quem sabe?

FS: Não penso muito nisso, não tenho uma visão muito utópica dessas possibilidades. Estou muito português, nós temos uma dimensão muito pequena e eu não me sinto próximo dessa dimensão. Adorava trabalhar com a Rosalia, mas é algo que nem penso, porque sei que nunca iria acontecer.

P: Quais são os teus sonhos/ambições/metas profissionais?

FS: Continuar a fazer discos até já não querer continuar a fazer discos ou se deixar de sentir que isto já não é o meu maior veículo de expressão. Se puder continuar a fazer canções enquanto me sinto pertinente, vou fazendo. Enquanto puder pagar contas a fazer música, melhor. Se puder ter filhos e pagar a vida dos meus filhos e estando eu a fazer canções, melhor ainda. Se tiver de ir trabalhar noutra coisa para além da música, será tão nobre como fazer canções. Não tenho problema com nada disso e estou-me um bocado a borrifar para a minha situação porque já percebi que vivo stressado e ansioso tendo um trabalho ou estando só a fazer música. Os meus estados de espírito são tão voláteis estando só, seja estar a fazer música ou não. Pretendo chegar a mais pessoas, porque é terapêutico para mim partilhar. Se eu estou a querer comunicar, não quero que me faltem receptores. Acho que chegar a mais gente é um objectivo mas não é um objectivo tocar em palcos maiores, já toquei em quase todos os festivais nacionais e não sou uma pessoa que procure a internacionalização.

P: Queres comentar aquilo que acabou por gerar polémica recentemente? O cancelamento do concerto de dia 14 de Fevereiro no Hard Club, pondo em causa um espaço que esteve aberto a comício do Partido Chega que tem uma agenda e um programa racista, xenófobo, homofóbico, transfóbico, misógino e tantos outros adjetivos depreciativos de opressão e intolerância, contra os quais lutas. Quando decidiram tomar essa posição alguma vez pensaram que se tornasse numa notícia?

FS: Na minha ingenuidade não tive noção da dimensão que isto ia ter. Era um comunicado para ser feito na internet, era uma posição, uma expressão de incómodo. No fundo, como se gosta de dizer, era uma moção de censura…

Como tu estavas a referir na tua pergunta, o que eu transmito no que digo não coabita no mesmo espaço. O que eu queria era que tivesse havido uma tomada de posição do Hard Club e aconteceu. O Hard Club mostrou uma consciência reflectida depois do que aconteceu e apercebeu-se de que aquilo que fez não foi o ideal. Isso para mim foi mais importante.

A dimensão que isto tomou foi algo que não controlei. Quando soubemos do encontro do partido. Chega foi numa quinta-feira e no sábado quando tivemos a certeza, decidimos emitir um comunicado a informar que o local do concerto ia ser trocado. Para nós foi importante esclarecer que a nossa posição era esta. Quero poder ir tocar a um lugar onde a tolerância existe, não quero ir a um sítio onde há intolerância. Não quero tocar no mesmo lugar onde há um comício de um partido, cujo o líder, chama aberrações a transexuais ou manda para a sua terra uma colega sua que também é deputada. Não posso compactuar com isso. Para mim é um posicionamento, o nosso posicionamento. Não quero entrar numa guerra de palavras.

Texto publicado na revista Parq , na edição de Março de 20

Texto de Patrícia César Vicente

Fotografia Frederico Om

Styling Pedro Aparício

Make up Raquel Soeiro