Texto Manuela Marques
«Pais & Filhos» é a mais recente peça da companhia Teatro Praga – que marca o arranque da nova temporada, no Teatro São Luiz (em Lisboa) –, orquestrada por Pedro Penim, que se assume como co-autor. Dado que o exercício de «autoria» não é exclusivo de uma única força, até porque tudo só existe em relação, e da relação surgem demais objetos que, por sua vez, multiplicam o número de relações, pelas suas ações e interações. – e com a premissa de que a «autoria» é sempre fruto de um processo colaborativo se inicia o espetáculo.
Espetáculo que resulta da simbiose entre os dados biográficos do seu encenador (co-autor) e o romance do escritor russo Ivan Turgeiniev, também intitulado Pais & Filhos. Em resumo, o enredo desencadeia-se com o regresso de Arkasha a casa de seu pai, e restante agregado familiar, na companhia da sua Camarada, uma presença disruptiva e irreverente – no romance de Turgeiniev, o protagonista Bazárov –, que vem instalar a discussão com os seus ideais niilistas, nomeadamente, pela proposta de abolição da «família», plano que fará estremecer as fundações do «lar».
Ao longo de, sensivelmente, cento e cinquenta minutos, esta peça – aligeirada pelo tom humorístico – coloca em cima da mesa assuntos sérios a refletir, neste caso, um tópico intemporal: a «família», e por consequência, a par da atualidade, o direito humano universal à parentalidade. Por extenso, tentarei – evitando o uso, em demasia, de advérbios de modo –, discorrer com parrésia algumas linhas sobre o que julgo ser a pertinência deste espetáculo, por convocar diversas questões, para as quais temo não haver respostas absolutas ou soluções definitivas – quiçá incorra, somente, no contributo de mais interrogações –, tal se apresenta a complexidade sensível da temática.
O termo «família», provém do latim famulus, que na Roma Antiga designava «escravo doméstico» maturou posteriormente para uma lógica de núcleo, entidade nuclear, o primeiro grupo social a que pertence o indivíduo. Irónico pensar na origem e significado da palavra «família», entendendo-se que ter família pode configurar na experiência de se ser refém, propriedade, de uma organização – a casa –, para o bem e/ou para o mal. Inúmeros são os casos, reportados e analisados, de insucessos nas disposições familiares que se constituem como fator traumático, e até destrutivo, elemento decisivo, em potência, no crescimento de qualquer pessoa.
A psicologia explica que fazer parte de um seio familiar é crucial no processo da construção de identidade individual de cada Ser Humano. Sendo determinante, saber o seu lugar de pertença, a sua origem, mesmo que esta não seja exemplar, positiva, isto é, para a criança antes ter maus progenitores, ou pais displicentes, do que não os ter, de todo. Constatando que a sua ausência figura como lacuna, uma falha, que se inscreve como ferida/dor crónica, com repercussões expectáveis, mesmo que remediáveis.
Haverá necessidade de, hoje e futuramente, se deliberar na dessacralização do conceito «família», de repensar os seus modelos que se regem pela consanguinidade e/ou por representações clássicas. Qual a validade do cânone familiar, no nosso caso, numa cultura ocidental, regida ainda por fortes influências católicas, mesmo que maioritariamente laica.
Talvez por ser um assunto transversal e inclusivo, que diz respeito à Humanidade, pelas suas dinâmicas, durante séculos, este tema tem sido, constantemente, abordado pela literatura, inclusive por autores dramaturgos, cujo o texto de Turgeiniev é um dos exemplos. Nesta versão contemporânea de Pais & Filhos, Penim – com a ajuda dos seus cúmplices – introduz-nos as questões sobre parentalidade, em conformidade com o tempo e a sociedade atual, repleta de novos paradigmas, como sejam as problemáticas no enquadramento da comunidade queer.
É com astúcia e engenho que o belo se revela nesta obra e sua proposição. Cénica e dramaturgicamente, tudo é equilibrado e coerente: o texto mordaz e inteligente, com links à cultura urbana – quer pela linguagem e referências, quer pelos artefactos cénicos –; visualmente é hiper esteta, da cenografia aos figurinos, fazendo jus à assinatura plástica dos Praga; os intérpretes estão irrepreensíveis, as personagens caiem-lhes que nem luvas, até a cadela Olívia, que não causa qualquer trouble.
«Pais & Filhos» não sendo uma peça consensual é impossível ficar-lhe indiferente, uma vez que reequaciona a importância e o impacto da «família», no decorrer da vida: a família é estrutura mesmo quando desestruturada.
texto Manuela Marques fotos ©Estelle Valente/TeatroSãoLuiz
«PAIS & FILHOS» de 24 Setembro a 03 Outubro, 2021 TEXTO E ENCENAÇAO Pedro Penim INTERPRETAÇAO Ana Tang, Bernardo de Lacerda, David Costa, Diogo Bento, Hugo van der Ding, Joana Barrios, Joao Abreu, Pedro Penim, Rita Blanco e Olívia (como Trouble) ASSISTENTE DE ENCENAÇAO Bernardo de Lacerda APOIO COREOGRÁFICO Luiz Antunes CENÁRIO Joana Sousa FIGURINOS Joana Barrios MESTRE COSTUREIRA Rosário Balbi CONCEÇÃO DE BONECA António Vieira Imaginações Reborn VÍDEO Jorge Jácome LUZES Daniel Worm d’Assumpção SOM Miguel Lucas Mendes| DIREÇAO DE PRODUÇAO Daniela Ribeiro (Teatro Praga) PRODUÇAO Alexandra Baiao (Teatro Praga) COMUNICAÇÃO DIGITAL Mafalda Jacinto (Teatro Praga) APOIO Griffehairstyle, Hospital de Bonecas COPRODUÇÃO Teatro Praga, Teatro Nacional São João e São Luiz Teatro Municipal