Enzo Cucchi na Culturgest

texto por Francisco Vaz Fernandes (artigo publicado em PARQ_80.pdf (parqmag.com)

Com curadoria de Bruno Marchand, Mezzocane, reúne uma seleção alargada de pinturas, esculturas e desenhos que Enzo Cucchi realizou nas últimas duas décadas. A exposição do artista italiano, torna-se propício a um balanço do que restou da Transvanguardia, movimento lançado por um influente crítico de arte que reunia um conjunto de jovens artistas italianos dos anos 80, entre os quais estava Cucchi. O certo é que desde a Arte Povera, a Itália deixara de ter um movimento “vanguardista” para se apresentar num plano internacional. Contudo, a Transvarguadia como o próprio vocábulo induz, referia-se a um momento revisionista que de facto punha em causa esse tempo linear e progressivo. Era pois, um momento revisionista da pintura, um volte face em relação ao minimalismo, a desmaterialização e a um grau zero a que a arte contemporânea se propunha chegar no seu processo progressista.

Instalação de Enzo Cucchi na Culturgest (foto de António Jorge Silva)

Vivia-se na época um processo de reunificação da Alemanha que punha em evidencia que mesmo dentro da Europa, a vanguarda era um fenómeno local. Observava-se que a própria guerra fria produzira várias vanguardas, a tempos diferentes que se encontraram face a face com a queda do Muro de Berlim, criando-se então uma perceção de um certo relativismo cultural visto agora de uma forma mais global. É nesse sentido que o novo expressionismo alemão que incluía artistas da ex RDA é acolhido internacionalmente provocando outros episódios regionais onde a pintura ganha novo interesse. É neste contexto que também o grupo da Transvanguardia que Achile Oliva Bonito coloca no âmbito do Pos-modernismo vence igualmente um grande interesse internacional.

Nessa época Enzo Cucchi lança um conjunto de telas de grande dimensões onde o que predomina é o traço, um desenho que irrompe pela tela conduzindo a uma figuração frágil. Há uma gestualidade livre que se condensa em imagens fragmentadas que se constituinte como um mapa de signos com um carácter simbólico abertos as diversas leituras. Ou seja, os fragmentos que se estendem pela tela de forma enigmática enfatizam de facto essa bidimesionalidade com que deciframos com o olhar um mapa “do tesouro” A matéria pictórica em si, os campos de cor são igualmente residuais e igualmente simbólicos e também eles são parte dessa leitura que nos é revelada. O artista convoca-nos para o seu território sensível onde há uma materialização das suas idiossincrasias que não são estranhas a qualquer espetador comum. A relevância da sua obra na época valeu-lhe uma exposição individual no Museu Guggenheim de Nova Iorque, logo em 1986, quando tinha apenas 36 anos..

Na sua figuração há algo de intemporal porque a materialidade da cultura é o cimento ao qual todos somos convocados. Essa perspetiva mantém-se, agora alargada para a esculturas que no conjunto de obras reunidas na Culturgest ganham até alguma predominância. O artista revela estar à vontade nos diferentes media e a própria instalação das peças ganha grande relevância no conjunto de toda a obra mostrada. De forma mais metafórica tudo faz parte de uma única tela e os artifícios expositivos não são de menor relevância que os objetos expostos. Em geral pequenos, especialmente quando falamos das esculturas em cerâmica e em bronze. Em alguns casos parecem até maquetas de estudo para algo de maior monumentalidade projetado para um espaço público. As referencias ao classicismo estão lá, numa imagética que já não convoca o poder e a submissão ou glória dos povos, mas pelo contrário, nos eleva a matéria do sonho. Há cabeças, casas, crânios, mãos e muitas vezes chamas, animais comuns e mitológicos, coroas de espinhos, e outros sinais contundentes, tudo como se fossem arquétipos ,as sombras do mundo real projetado que se constituem como pequenas narrativas, sem estabelecer um aparente discurso.

Apesar do longo percurso de Enzo Cucchi, é interessante verificar que a sua obra recente mantém uma grande vitalidade, e esta exposição é bem representativa de uma arte inconformada que procura sair dos seus próprios paradigmas que vai cristalizando. É relevante verificar como as únicas telas que sobrevivem, se assim podemos dizer , não passam de grades cobertos por uma malha metálica que realmente recebe alguma matéria pictórica figurativa quase residual.

São quadros que permitem que se veja para além da superfície se possa atravessar o espaço da tela que acabam por ressaltar um certo um vazio e espaço aberto, ganhando tudo uma mesma materialidade mais ou menos densa tal como podemos pensar no concepto espacial apontado por Fontana. Esta referencia a uma tradição de arte contemporânea italiana , ou a outros aspetos explorados pela Arte Povera, tudo somado fazem de Enzo Cucchi um artista do seu tempo , que o mesmo será dizer , o artista que interioriza o seu tempo sensível, seja próximo ou longínquo, para estruturar e projetar a sua visão do mundo.

Enzo Cucchi

Culturgest,

Rua do Arco do Cego, 50

até 30 Junho

Culturgest.pt