Ode à Liberdade
Texto de Daniel Bento
Com raízes já bem assentes no panorama de moda nacional, o trabalho criativo de Dino Alves continua a florescer de forma sublime e a dar inúmeros frutos na passarela. Na sua marca homónima, o nosso enfant terrible mantém-se fiel ao que o move, num grito que ecoa por toda a indústria: afirmar a sua liberdade e comunicar a sua verdade. Foi com essa verdade que o criador falou do seu trabalho ao longo desta entrevista, permitindo uma pequena visita ao seu génio interior.
Foi apelidado de enfant terrible da moda portuguesa. Sente que o título é adequado?
Eu gosto muito. Aliás, eu costumo dizer que posso não ter muito, mas pelo menos um título eu tenho. É uma coisa que, tirando a Ana Salazar, que tem sempre o cognome de “Mãe da moda portuguesa”, com toda a justiça, não há mais nenhum criador que tenha. E eu acho que é adequado, acho que o terrible tem a ver com os temas e com os conceitos onde eu me inspiro e o enfant é para contrastar. Talvez tenha a ver um pouco com eu ter um lado um dócil e esse contraponto acho que foi o que deu origem a esta expressão. É assim que eu faço a leitura.
Muitas das suas coleções funcionam como um manifesto. É importante, para si, marcar uma posição na indústria?
Eu costumo dizer que não me contento só com o design das peças, ou seja, eu acho que toda a gente que tenha o mínimo de gosto consegue desenhar uma peça de roupa. O comunicar através disso, contar coisas ou deixar mensagens é que é o mais difícil e eu acho que é isso que eu faço. Também já disse algumas vezes que quase todos os meus colgas designers fazem roupa melhor do que eu porque, para já, têm formação em design de moda e eu não tenho. A minha formação é em pintura. Eu tenho outras valências que tem a ver com isto, com o conseguir contar histórias, conseguir fazer quase política. Eu, por incrível que pareça, não me sinto um ser nada político, não sou nada aficionado em partidos, mas depois eu acho que o que eu faço através dos meus desfiles não deixa de ser uma forma de política. Quando reivindico coisas, quando negocio coisas. De uma forma social, estou a fazer política. E, portanto, para mim é essencial que eu comunique e que faça statements através dos desfiles.
Acredita, portanto, que a moda é capaz de transformar a sociedade e a consciência humana?
Acho, acho. Até porque é um campo da vida das pessoas onde existe muito apelo, as pessoas facilmente sentem apelo quando veem determinadas peças de roupa, desfiles, campanhas, porque tem sempre alguma magia. Ainda por cima há uns anos atrás, vou fazer uma redundância, mas a moda não estava tanto na moda. As pessoas não davam tanta importância à moda. A partir de uma certa altura, eu lembro me porque dei algumas aulas em cursos de modelo, eu percebia que os miúdos eram fascinados por tudo o q tinha a ver com moda. Hoje em dia, também com tudo o que tem a ver com espetáculo, com teatro, com televisão. E, portanto, há muita vontade de pertencer a este mundo por parte das gerações mais novas e não têm o mesmo conhecimento de que moda não é apenas uma coisa de glamour e de beleza. É uma indústria complicada, ser designer de moda durante muitos anos não é uma coisa fácil. Também há muitos espinhos neste mundo. Por isso, eu acho que, para o bem e para o mal, porque a moda também já influenciou negativamente as pessoas, eu espero que também consiga influenciar de uma forma positiva. A forma negativa que eu falo é no apelo ao consumo desmedido e chegamos a um ponto em que se tem de ter realmente cuidado com o planeta e, sendo que a moda é um dos setores mais poluentes do planeta, está na altura de fazer alguma coisa para contrariar isso.
Os desfiles apresentados pelo Dino carregam uma forte veia performativa. Qual é o papel do espetáculo na elevação das mensagens?
Na verdade, é um complemento porque os espetáculos normalmente têm sempre a parte performativa. Vem sempre do conceito da coleção, ou seja, é uma consequência e, portanto, ajudam, muitas vezes, até mais do que a própria roupa porque nós, quando definimos um conceito, é apenas um ponto de partida. Nós inspiramo-nos numa ideia, seja um filme ou uma mensagem. Eu normalmente inspiro-me sempre mais em coisas de caráter humanitário, social, nunca me inspirei muito em épocas ou em filmes. Há outros designers que se inspiram muito em filmes ou em bandas musicais. Não é tanto a minha fonte de inspiração, são essas questões sociais ou coisas da minha história como foi este último desfile desta última estação de inverno. Mas a parte performativa é o que ajuda mais a passar as mensagens que eu quero, porque, às vezes, só pela leitura das peças que vemos, pode não ser o suficiente para perceberes qual é que é a ideia, a mensagem. E a parte performativa ajuda sempre muito.
Na conceção de uma coleção, qual é o peso da vertente conceptual comparativamente ao lado usável do vestuário?
Eu acho que foi isso, também, que me destacou do resto e que contribuiu para esse título de enfant terrible em que eu sempre fui absolutamente livre de fazer o que quero. Ou seja, eu faço um vestido muito bem feito e com um bom tecido, mas depois, se no final eu achar que aquilo precisa de ser rasgado ou sujo com tinta, eu não me inibo de o fazer. Depois, com o andamento da minha carreira, há sempre compromissos que vamos tendo que assumir, por exemplo, clientes em quem temos que pensar um bocadinho quando estamos a desenhar uma coleção. Eu comecei a introduzir um bocado dessa preocupação e fazer peças que eu sabia que elas iam gostar e que iam adquirir. Houve, portanto, a uma certa altura, um compromisso entre a minha liberdade e as minhas intuições com essa parte de “eu tenho esta cliente, eu sei que gosta deste tipo de peças, eu vou adaptar”. Ou seja, essas peças comerciais nunca podem sair do universo da coleção, têm que estar, de alguma maneira, de acordo. De qualquer maneira, a preocupação é sempre focada na parte mais conceptual. Depois, no desenvolvimento, é que começo também a pensar “se meter umas camisas brancas, fica bem conjugar com isto” e, no final, com as peças colocadas no charriot, há sempre umas peças mais básicas e as pessoas nem se apercebem, porque a forma como o styling é feito, por vezes, fica exuberante, mas retirando e separando as peças todas, há de facto algumas mais básicas e mais usáveis.
Existem muitos equívocos em relação ao seu trabalho? Quais são os principais?
Claro que há sempre pessoas que olham, veem, gostam, mas nem sabem muito bem porquê. Mas há pessoas que me vêm dizer coisas e eu percebo que elas perceberam muito bem e têm percebido ao longo dos desfiles o meu estilo e conseguem identificá-lo. Então, eu não sinto que haja muitos equívocos sinceramente. Não me lembro de ter tido alguma opinião de alguém que eu tivesse pensado “ok isto está mesmo ao lado”.
O Dino iniciou-se nas artes plásticas. Alguma vez ponderou seguir outra carreira além de designer de moda?
Eu, quando tive que decidir pela área que eu queria para continuar os estudos, optei por pintura, embora sempre tenha sentido que a moda também estava na minha vida. Eu lembro-me, com cinco ou seis anos, já era atento e já era eu que gostava de escolher a minha roupa e tive alguns episódios que denunciam muito bem isso. Por exemplo, com seis ou sete anos, eu meti na cabeça que queria ter um daqueles conjuntos jeans and jacket tipo vaqueiro, e lembro-me, na altura eu ainda vivia em Anadia, de ter feito os meus pais correram todas as lojas que havia entre Coimbra e Aveiro e a roupa não existia em lado nenhum. E, até hoje, não consigo perceber muito bem se eu sonhei com aquilo, se eu vi alguma imagem daquilo, mas o facto é que os meus pais, e isto é um sinal muito forte, ampararam-me o jogo, ou seja, andaram comigo e isso significa que percebiam que eu já tinha alguma personalidade forte em relação a isso. A dada altura, depois de percorrermos não sei quantas boutiques, aparece-me a empregada da loja vinda do armazém com o conjunto e eu lembro me, ainda hoje, da sensação quando vi aquilo que parecia uma espécie de um milagre. Isto eram sinais que já adivinham esta tendência. Mas pronto, estudei pintura, na altura a moda também não era o que é hoje, nem era vista como é hoje. Na altura, eu achava que moda era uma coisa mais de costureiro e menos artístico, menos intelectual. Hoje em dia, eu já acho que a moda é outra coisa, uma expressão artística. Então, a moda aconteceu por acaso, porque eu vim para Lisboa para fazer carreira de artista plástico, depois fiz um desfile que achava que podia ser só uma coisa isolada e a partir daí não tive hipótese. Mas, neste momento, e ao longo destes anos todos, sempre tive vontade de voltar outra vez a pintar porque, às vezes, tinha mesmo saudades do ato em si ocorre-me esta ideia de que um dia posso afastar-me da moda, no sentido, deste ritmo de estar a fazer desfiles. Claro que não me vou conseguir afastar completamente da moda, mas falo neste compromisso, e talvez voltar um bocadinho às artes plásticas. E, por acaso, nesta quarentena tenho dado um passo em relação a isso e tenho estado a pintar. Quem sabe um dia poderei deixar a moda e voltar novamente ao início.
Além da moda de autor, também trabalhou como stylist e como figurinista de espetáculos de dança e teatro. Em qual das áreas mais se revê?
Moda de autor é sempre onde eu tenho mais liberdade, onde eu não devo satisfações a ninguém, digo aquilo que quero e expresso-me como quero. Também gosto imenso de fazer figurinos, mas há sempre, à partida, uma reivindicação, existe um espetáculo que tem um texto ou um encenador e eu tenho de ir de encontro. É claro que é sempre possível pôr o nosso cunho pessoal em tudo, mas há aqui uma condução inicial que nos retira alguma liberdade. Existe um diretor de projeto que já tem as coisas mais definidas daquilo que quer e eu tenho que ir ao encontro. Portanto, nas minhas coisas, é onde faço aquilo que realmente quero.
Qual considera ser a principal raison d’être da marca?
É a minha forma de me expressar, é assim que eu comunico. Podia ter sido na pintura ou na instalação ou na videoarte, mas aconteceu na moda. E claro que depois se foi consolidando e é a minha forma de viver, é daí que eu retiro a minha subsistência e o dinheiro para viver, embora às vezes eu gostaria que não tivesse que o ser, que fosse só mesmo por uma questão de me expressar e de me fazer dizer aquilo que eu quero. Mas claro que também tem essa componente, é o meu business. Mas é sobretudo a minha forma de me expressar não só aquilo que eu quero dizer, mas também os meus valores, a forma de estar na vida.
Texto de Daniel Bento para a revista PARQ 67 Outubro de 2020