Mergulhar no desconhecido

Texto de Sofia Seixo Garucho

Nascida e criada em Portugal, Oeiras, Daniela da Silva Andrade, também conhecida por DANYKAS DJ, foi bebendo da cultura que a rodeava: festas de bairro e música africana. Foi praticando desde muito cedo e acabou por ver os seus sonhos cumpridos: é DJ, produtora, Label Manager da Seres Produções (editora discográfica com sede em Angola) e Host do programa DANYKAS DJ JOY TIME, na Rádio Quântica.

O seu percurso enquanto produtora é recente, contudo, já tem editado um EP a solo “Dina de Brava”, e fez parte de três compilações: “Peladinha” editada pela Torcida Records Club; “200” publicada pela Seres Produções; e, mais recentemente, “Memory Palace” o último lançamento da Mãe Solteira Records. Sofia Seixo Garrucho entrevistou a artista que tem difundido os ritmos africanos há mais de 7 anos.

Quando começaste a fazer DJing e o que te motivou para o fazer?

Eu sempre fui, no meio da minha timidez, muito curiosa. Em casa, os meus pais viviam música da maneira mais open que possas imaginar! Eles são cabo-verdianos, a minha mãe tem raízes portuguesas, indianas e americanas, então lá em casa ouvia-se de tudo um pouco: desde a Morna, Funaná, Coladera, Bachata, Kuduro, etc., e isso acabou por nos influenciar muito.

O amor pela música sempre esteve lá! Depois, as minhas duas irmãs tiveram a sorte, digo eu, de namorarem com DJs, e um deles (Dj Betwo), tinha um projeto que se chamava Black Project, composto por 5 DJs que tocavam géneros diferentes e faziam a construção das festas nesse sentido.

Eu ainda bem pequena, comecei a observar, gostei e depois comecei a achar interessante a componente Djing: como é que tu pegas num género, vais buscar um totalmente diferente, às vezes com BPMs completamente diferentes (que na altura eu nem sabia o que era isso), misturá-los e fazer essa simbiose de géneros. Fiquei “pá, caramba! Aquilo é nice!” Então fiquei com o bicho ali.

À medida que fui crescendo, acompanhei a minha irmã, que fazia parte desse projeto enquanto gestora e organizadora, aos locais onde eram feitos os eventos, no Bairro dos Navegadores, em Talaíde, onde morei. O pessoal montava um toldo, tipo tenda com 50 metros, estendiam ao longo da rua, arranjavam material de som e fazia-se a festa.

Então pensei: “porque não começar a aprender qualquer coisinha com o meu cunhado?” Lembro que quando ia à casa da minha irmã e cunhado, pois era lá que podia ter essa proximidade de ver uma mesa de mistura, só pelo facto de eu mexer com o pitch já estava toda emocionada por ver a transformação da velocidade da música (risos). Começou aqui o gosto pelo DJing, mas não era nada muito por aí além.

E quando começaste a levar o DJing de uma forma mais profissional?

Essa minha paixoneta surgiu entre os meus 9/11 aninhos! Eu adorava toda aquela fusão das festas e de como as pessoas se comportavam. Aquilo enchia-me o coração. Mais tarde, a partir dos meus 14/15 é que tive a oportunidade de brincar um pouco mais a sério, de misturar música de vários géneros, mas sempre em casa. Não tinha equipamento, usava o Virtual DJ, instalei esse software no primeiro laptop que o meu pai me tinha oferecido. Os mixes eram feitos usando as teclas do laptop, truque esse ensinado pelo meu “irmão” MC Bolicao. Fiquei por casa a praticar e o meu cunhado ia dando uma aulinha ou outra sempre que fosse à casa deles.

Em dezembro de 2015 tive o meu primeiro convite, feito pelo DJ Satélite, para expor aquilo que fazia no quarto para um palco. O convite foi para tocar num projeto que se chama Room System, que começou originalmente em Angola. Esse projeto consiste na componente musical, mas vê a arte como um todo. O DJ Satélite, entretanto, veio de Angola para Portugal e quis fazer uma primeira edição na Europa, que calhou por ser em Lisboa. Além dos DJs, dos cantores e oradores, o projeto consiste em trazer artistas plásticos, designers, que juntam a componente visual ao som, resultando depois numa apresentação em conjunto.

Não havia muitas artistas femininas, muito menos a representar a cena do Afro-House. Ele encontrou uns mixes que eu tinha bwé malucos no SoundCloud, porque eu sou uma fã danada de Techno e Kuduro e convidou-me para fazer parte da primeira edição do Room System em Portugal.

Como já iam uns valentes aninhos a tocar sozinha no quarto e talvez fizesse sentido partilhar a minha timidez com o mundo, aceitei e assim foi, na Casa Independente, em Dezembro de 2015, a minha primeira estreia ao vivo. E isso foi o que me deu as asas para me tornar borboleta e sair do quarto/casulo, principalmente porque esse projeto procurava ter uma artista feminina também.

Qual foi o teu maior obstáculo neste processo de evolução enquanto DJ?

Bem… Não vais acreditar nisto, mas o meu maior obstáculo foi pensarem que por não ser portuguesa não posso participar num certo festival/evento. Eu sinto que o problema é não verem o artista enquanto veículo de expressão artística, mas sim associá-lo a uma certa nacionalidade, e acho que não preciso aprofundar muito mais… Por não seres dessa nacionalidade não tens direito/acesso a certas coisas.

Acaba por não ser um obstáculo só meu, mas infelizmente é o de muita gente. Mas não levei isso como um “stop” pois a vontade é maior que todos esses “Stops”. Não me querem ver como sou, mas sim com os olhos que idealizam, “tudo bem”, mas não vou deixar que isso seja um entrave, vou sim usar isso como alavanca para fazer aquilo que mais gosto, que é tocar música e partilhá-la com quem tem o mesmo sentimento. E o maior prazer que tenho é mesmo fazer isto.

E o que te dá mais prazer nesta luta?

É o desconhecido. Eu vejo isto como uma bênção. Porque se tu tens oportunidade de fazer algo que gostas, tudo o que vier para ti vais receber como a maior prenda. Então, o desconhecido para mim é top, porque amanhã posso acordar e ter um e-mail a dizer: “olha, queres vir para isto? Queres fazer este projeto?”, tal e qual a sensação de comprar uma raspadinha e não saber o que vão encontrar!

É assim que vejo e vivo esta luta e acaba por ser também o que mais me motiva a fazer isto, porque há espaço para todos e o desconhecido é mesmo isso, vais acabar por ter coisas que te vão deixar radiante, contente e grata.

Porque de certa forma foi assim que surgiste no circuito musical…

Exato, e como eu costumo dizer, quando tu tens não uma procura incessante pelas cenas, elas acabam por vir duma forma tão bonita, especialmente porque não estás à espera, então acabas por fazer aquilo com uma maior entrega, mostras a tua gratidão pelas coisas boas a acontecer. Porque quando fazes essa procura incessante, ou se já estás à espera que as coisas vão acontecer, talvez não venham com tanto açúcar. Se viveres nesta dimensão, acho que acabas por ter uma experiência muito mais enriquecedora e prazerosa.

Tu lançaste o teu primeiro EP em 2020, ou já tinhas lançado trabalhos anteriormente?

Eu comecei a pegar na componente da produção em meados de 2011. Só que na altura, como eu estudava e praticava desporto, o meu tempo para a música chegava a ser 0 e tive de deixar muita coisa em stand by, principalmente a música.

Quando eu recebi o meu primeiro portátil eu tive o conhecimento do FL Studio. Sempre fui muito curiosa, como eu já tinha dito, e instalei-o. Aquilo já vinha com um loops bwé bonitos, eu fui vendo tutoriais no Youtube, só que sabes aquela frase “não te metas em cuecas que não te servem”? Foi isso, fiz uma coisa ou outra e acabei por desinstalar o programa.

Mais tarde, com a componente de DJing já sabida que era a minha paixão, e também ver que a cena de produção era fixe, porque tens a oportunidade de transpor aquilo que tu gostas de ouvir, no meio de tanta sonoridade, e tentares produzir algo em função dessas misturas, então pensei “porque não agora tentarmos fazer aqui uma coisinha ou outra?”.

Felizmente, tinha a sorte de ter um mestre ao meu lado para me dar algumas guidelines, e às vezes propunha-me: “porque não sentarmo-nos aqui um bocadinho para produzir?” ou de vez em quando eu via-o enquanto ele estava a produzir, e em 2019 dei início ao processo de produção do EP “DINA DE BRAVA”, que acabou por vir à tona em maio de 2020.

Sentes que ser DJ te ajudou nesse processo de produção?

Não. Muito sinceramente não. Porque quando és DJ o teu foco é passar a música que mais gostas, mostrar coisas novas para as pessoas, então na minha opinião pessoal, não foi um fator determinante para começar a produzir. O que me puxou para a produção foi mais o facto de ser amante de música e ter a curiosidade de ver o que a mente pode criar. Foi tentar transpor a fusão das várias sonoridades que me levou a explorar esse campo. Mas, de verdade, essas duas componentes até se cruzam, então dou aquele “props” de 10% ao Djing (risos).

Desde que vives a cultura do Afro-House, quais foram as principais mudanças que sentiste na cena? Tanto em Lisboa como no resto do Mundo.

Foi há volta de 9/8 anos que o Afro-House começou a ter uma maior expressão. Já se ouvia, mas não era muito nos países lusófonos: ouvia-se muito na África do Sul, também um pouco em Angola, mas não tinha a mesma expressão em outros pontos. É um género que acabava por se expressar muito em festas de bairros.

O pessoal fazia uma festa ou outra e era assim que se difundia. No início era algo difícil, até porque não tinhas as mesmas plataformas de divulgação que outros géneros musicais tinham. Na altura ouvia-se mais Funaná, a cena EDM, Techno, Kuduro, Kizomba, Reggaeton, entre outros e o Afro-House ainda demorou uns aninhos a chegar aos outros países lusófonos e ao resto do mundo, consequentemente.

Hoje já consegues ouvir Afro-House na China, ver a ser produzido na China, Indonésia, Brasil, Israel etc. Conseguiu-se expressar o Afro House enquanto nome, mas não exclusivamente. No entanto, ainda há sítios que têm dificuldade em exprimir aquilo que é o Afro-House na sua essência. Há clubes, mesmo em Portugal, que têm uma certa dificuldade em promover uma festa em que o DJ vai tocar Afro-House. Têm de inventar ali uma palavra diferente, “embelezar” a palavra, e o Afro-House ainda não é bem sentido/mostrado.

Têm, de certa forma, de a “branquificar”?

Nem mais! Então eu não posso dizer que o Afro-House está expresso com a sua real essência. Ainda é um bocado camuflado, mas já o ouves em muitos clubes. Posso dizer, de grande agrado, que cresceu bastante. Agora falta tocá-lo e representá-lo com a sua verdadeira essência.

O que é a essência do Afro-House para ti?

Basicamente é teres uma base da House music, ires buscar a essência ou registos da música e da cultura africana, e misturá-las. Vais buscar instrumentos africanos, percussão, um sample duma mãe a falar ou a ralhar (risos)…

O Afro-House baseia-se muito no que a natureza te dá, e tu transportas isso para a música. Acho que esta é a explicação mais simples e pura aos meus olhos e ouvidos. Tu acabas por ir buscar sons que depois te dão as luzes para construíres aquilo que tu queres. Pelo menos é assim que eu a vejo na linguagem mais clara possível. Aquilo que é gratificante e ousado no Afro House é que o pessoal vai buscar o seu sparkle para tentar criar a sua identidade sonora.

E o que é que sentes que é necessário fazer para a cena Afro-House em Lisboa e em Portugal começar a crescer sem perder a sua essência?

Primeiro, apresentarmos o Afro-House como ele é, sem embelezar palavras, e representar a cultura. Representatividade é fulcral! Não podemos ser amantes de música e manifestantes dela se só pensarmos no momento do shining. É preciso criar uma cultura que seja real. Nós, enquanto DJ ou produtores temos de ser pregadores para que quem nos acompanha, também viva dessa religião.

Enquanto tivermos um público que está ali apenas pelo momento, pela tendência, a cultura não vai crescer. É preciso ir à raiz, criar palestras onde se fale da essência do Afro-House ou, de como é que se faz ou o que pretende transmitir. Faltam notícias! Escassez de “escola” principalmente nas gerações mais novas, onde na impossibilidade de terem acesso a conferências ou palestras, não têm esta oportunidade de partilha e aprendizagem.

Quando tu vais olhar para a história do Hip Hop e do House music em si, tu vês que o pessoal impulsionou estes géneros duma maneira que hoje é sustentável. E com o Afro-House, acaba por ser a mesma coisa: há a necessidade de criar e incentivar essa tal cultura, de uma forma sustentável e saudável, respeitando as suas raízes, para o pessoal entender que isto não é algo momentâneo. Só depois é que podemos falar Afro-House a longo termo. Se não fizeres isto o género torna-se plástico e trendy.

Houve algum momento da tua carreira de que te tenhas orgulhado mais em específico?

Eu acho que todos os momentos me levam a ter orgulho. Desde o momento em que soube “Daniela, vamos sair do quarto, e do quarto vamos para um palco”, tendo a possibilidade de partilhar isto com mais pessoas que têm o mesmo apreço que eu, para mim todos os momentos acabam por ser motivos de orgulho.

E acredito também que todas nós, que estamos a fazer isto, acabamos por impulsionar muitas outras pessoas a saírem de buracos, onde se calhar sentiam que não iam ter um espaço. Ao verem-nos a fazer isto, também acabam por tentar. Então acaba por ser um orgulho imenso ver tudo isto a acontecer e a crescer. Mas para mim, partilhar música com as pessoas, esquece….

E quais foram os eventos em que tu mais gostaste de tocar? Porque tu já tocaste em muitos lugares do mundo, certo?

Do Mundo propriamente, não. Eu acho que as pessoas têm essa ideia, talvez por viver fora em alturas distintas, mas não ainda não espalhei muito as asas. Se eu te falar de estrangeiro, só mesmo no UK. Quando ainda estava a viver em Portugal, vim tocar aqui em dois eventos que, por acaso, foram a minha irmã e o meu outro cunhado Dj (DJ JT) que estão cá a viver que organizaram. Cabo Verde, infelizmente, acabei por não poder tocar por causa da situação do COVID lá. Portugal é o sítio onde venho a ter mais performances. Houve outros sítios quase quase para ir, mas o titi Covid não permitiu.

Por acaso pensava que já tinhas mesmo tocado numa das Ilhas. E também lançaste uma música com esse nome, não é?

Ya, “Uma das Ilhas” era uma frase muito usada pela minha mãe. Cabo Verde é composto por dez ilhas, e a minha mãe é de Brava. Então cada vez que lhe perguntavam: “de onde é que és?”, ela respondia sempre: “de uma das Ilhas”, que é uma expressão muito usada pelo pessoal que nasce em Cabo Verde. Quando não queres dizer de onde é que és, dizes “sou de uma das ilhas”.

Tu inspiras-te muito nas tuas raízes no teu processo criativo, não é?

Ya, principalmente na minha mãe. Ela era muita viva, sabes daquelas pessoas que tu sabes que tens a sorte de ter na tua vida? A minha mãe era dessas pessoas! Eu olho para ela e chovem ideias. É a minha maior motivação. Tudo o que possas imaginar do que é uma boa pessoa, ela também o era.

Texto de Sofia Seixo Garucho para PARQ_73.pdf (parqmag.com)