É noite: todas as fontes agora falam mais alto.
E também a minha alma é uma fonte que jorra.
É noite: só agora despertam todos os cantos
dos amorosos. E também a minha alma é
o canto amoroso.

(…) E assim falou o velho enfeitiçador, olhou à
sua volta com ar matreiro e pegou, depois,
na sua harpa.

Nietzsche, Friedrich (1998). “Assim Falava Zaratustra”. Volume Qua-
tro. Relógio D’Água

vista geral

Os pensadores reconhecem o poder da música, e a sua suprema força, sobretudo quando irrompe de uma noite escura e silenciosa. As noites inquietantes descritas nas narrativas de Proust eram interrompidas pelo som de trompas, oriundas dos bosques mais trôpegos e profundos. As noites de Nietzsche3, por sua vez, eram atravessadas por cantos inflamados e troantes dos amorosos, e por fontes que, abundantemente, jorravam e incandesciam a alma. Em ambos os casos, a noite, essa morada das trevas, era povoada por desassossegos e inquietações que somente eram aquietados, no fim, por majestosos cantos, ou por vozes complacentes oriundas dos seres que habitavam os lugares mais recônditos da terra

José Baptista Marques, Entre o silêncio e a alma, 2015

A um dado momento o filho de Zeus, Anfion, que tinha um irmão robusto, dedicado às artes da caça e do pastoreio, conseguiu vencê-lo ao mover, apenas com os sons seráficos provindos de uma lira, pesadas pedras destinadas à construção da muralha de Tebas (Proust, Marcel, “À Sombra das Raparigas em Flôr – Em Busca
do Tempo Perdido”. Volume II. Relógio D’Água
)

Na obra de Nietzsche, também o velho e deambulante Zaratustra ameaçava dominar os adversários com a sua antiga harpa. Porém o encantamento pelas melodias etéreas e sagradas provenientes da harpa de Zaratustra, não iria perdurar eternamente, nem os sons ciciantes dos instrumentos das velhas orquestras, estes representativos da natureza, iriam ser apreciados para todo o sempre. Haveria quem no advento da indústria, se voltasse antes para os ruídos histriónicos dos motores e se deleitasse com a velocidade arrebatadora dos veículo.

Richard Shapper, chaleira 9091, Alessi 1982
Michael Graves, Chaleira 9093, Alessi, 1985

Luigi Russolo foi um desses entusiastas. No ano de 1913, dirigindo-se ao compositor Balilla Pratella, num fervoroso Manifesto Futurista, anunciava uma arte nova, a arte dos ruídos. O pintor afirmava que a época anterior ao som-ruído tinha representado apenas uma existência em surdina, e exaltava a capacidade da máquina poder vir a produzir sons intensos e variados, sons complexos e dissonantes: “O ruído, irrompendo, confuso e irregular (…) não se nos revela nunca por inteiro e reserva-nos incontáveis surpresas. Temos a certeza de que, ao escolhermos e coordenarmos todos os ruídos, enriqueceremos os homens com uma volúpia insuspeitada. (Russolo, Luigi, “A Arte dos Ruídos, Manifesto Futurista”, 1913)

vista geral

A exposição

Um objeto de design não pode, apenas, constituir um deleite para a vista. Muitos têm sido os objetos desenhados por designers que contemplam somente um dos sentidos: a visão. Também não pode ser, unicamente, um recetáculo de funções, sem a pretensão de despertar emoções, ou apelar a outros sentidos. Walter Gropius, em 1919, no programa da escola de Bauhaus em Weimar, afirmava a importância do convívio dos estudantes, fora do recinto escolar, e do contacto com as diferentes artes, como a poesia, o teatro, a música6. Com este desejo de confluência das artes, Gropius confirmava a importância dos diferentes sentidos, além da visão, para a formação dos seus alunos, e para a criação de novos objetos artísticos ou utilitários.

Miguel Vieira Baptista, 78 RPM Collection, 2009

Muitos dos objetos de design, e os dados históricos estão repletos de exemplos, são criados com vista a satisfazer o olhar, esquecendo as sensações levadas a cabo pelo tato, pelo peso, ou pela temperatura7. Bruno Munari, no seu livro Das coisas nascem coisas”, refere, precisamente a acústica, nos espaços públicos, como sendo, também, um elemento importante a ter em conta pelos designers, para o bem-estar das pessoas. É justamente, num desses outros sentidos, que esta exposição se detém: a audição.

Rui Valério, Bonnie and Clyde, 2014

O som, nos objetos, pode surgir como indicador, como alerta ou pode servir como agente de comprovação de uma dada operação. Também nos avisa quando algo não está bem, ou quando não estamos em segurança. Alguns semáforos, por exemplo, são acompanhados por sons, quando a luz colorida muda. Além do aspeto visual, e da sensação táctil que o objeto transmite, o som também pode enfatizar as suas funções. E o objeto encerra, em si, várias dessas funções, como as funções prática, estética, simbólica e lúdica.

Os designers e artistas, cientes dessa presença do som nos objetos – que aumentaram, com o advento da indústria -tomaram partido das suas qualidades expressivas, e potenciais rememorações invocadas. Richard Sapper, nos anos 80 desenhou uma chaleira de apito, 9091 Bollitore (1983), e muito embora a sua carreira tivesse sido assinalada por um trabalho profusamente ligado à indústria, soube contornar a rigidez da produção em série, aplicando
uma nota pós-modernista, criativa e humorística às suas peças

Sweet Scope, Leaning Sounds, 2022

Henry Bertoia, o designer que todos conhecemos por ter desenhado a icónica Two -Tone Side Chair, foi também, ele próprio, um músico, e criador de esculturas/objeto, desenhadas, única e exclusivamente, para serem usadas como instrumentos musicais, em composições sonoras experimentais.

Convém, também, debruçar-nos sobre aqueles objetos de proveniência anónima, e do modo como os mesmos foram usados em experiências sonoras, como as realizadas por Pierre Henry, em “Variations pour une porte et un soupir”, de 1963. Estas experiências compreendiam um conjunto de gravações de ruídos, sobretudo portas a ranger, a bater, ou a difundir longos sons, como se fossem lamúrias, ou choros.

Jelle Mastenbroek, Splendour Lender, 2012

Recordemos Edgar Varèse e o seu Poème èlectronique, uma composição musical electrónica, criada para o Pavilhão Phillips, o então edifício projetado por Xenakis e Le Corbusier. Ou John Cage, o compositor que dizia que “tudo o que fazíamos era música”, e a sua emblemática obra, “4 ́33”. Esta exposição, com o objetivo de captar um novo “olhar” sobre os objetos, que não seja o do uso imediato, ou o da fruição visual, procura estimular o visitante para uma escuta dos objetos, dos seus murmúrios, das suas ressonâncias, das suas canções, bem como para a compreensão de que os sons também são propriedade dos objetos, os complementam, e orientam os seres humanos.

Como o Design Soa será assim, uma oportunidade para revelar a sensibilidade sonora de designers e de artistas, numa comunhão das artes. Uma exposição onde o som é protagonista, e estabelece relações, ou ressonâncias, entre as várias obras.

Fernando Brízio, “Jarra”, alumínio, 2003

Umas vezes as obras oferecem-nos deleitosas melodias, outras vezes, já mudas, invocam-nos memórias de sonoridades há muito recônditas e esquecidas. Tomando-nos a todos de sobressalto. “Como o Design Soa” pretende ser um corolário de emoções, e de experiências sensoriais, que, através do som, reverberam para uma experiência a várias mãos e a múltiplas tonalidade Temos assim o som como elemento agregador, que une o design à arte e, a arte à poesia

Texto de Carla Carbone, curadora da exposição “Como o Design Soa” , desenvolvido para o Forum Arte Braga