A Ecdise de Cigarra
Texto de Sofia Seixo Garrucho
DJ, performer, produtora, label manager e curadora são algumas das valências de Cigarra que nas praças portuguesas e do Mundo começa a ser uma figura familiar. Foi uma das agitadoras da cena underground de São Paulo e fez parte da formação original do coletivo Voodoohop. Era metade do duo Jardim Elétrico, ao lado de Birdzzie e em 2016 lança o seu primeiro trabalho autoral, “Límbica”, pela Tropical Twista Records. Mais tarde, criou a sua própria label, Hysteriofônica, uma editora discográfica focada apenas em artistas femininas. O seu trabalho tem sido direcionado no empoderamento feminino dentro da cena eletrónica mundial, tendo vindo a desbravar muito caminho para novas DJs e produtoras. Sofia Seixo Garrucho esteve à conversa com Cigarra para descobrir mais sobre o percurso e militância.
Antes de mais, porquê o nome Cigarra. Tem algum significado especial?
Vixx! (risos) Vamos lá… Eu integrava um grupo onde participavam vários DJs que tinham nomes de animais, meio que por acaso. Tinha Macaca, tinha Urubu, tinha o Birdzzie… Isto foi há uns 9/10 anos atrás. E aí, quando eu criei essa ideia de tocar sozinha, porque eu tinha uma dupla, o Jardim Elétrico com o Birdzzie, quando me veio a vontade de tocar sozinha, estive num festival na Chapada Diamantina e fiquei numa barraca, debaixo de uma árvore imensa cheia de cigarras. E me veio essa coisa muito forte assim, delas serem muito maravilhosas, então eu fiquei tipo: ”uau, isso é muito lindo o que está acontecendo em cima de mim, mas ao mesmo tempo é muito estridente e incómodo. Mas é um incómodo do tipo: como negar? É um incómodo muito interessante e especial.”E aí eu pensava naquilo que eu queria tocar e tinha um pouco a ver com isso. Tem muito a ver com casulo também, com o tempo que eu fiquei encasulada criando isso.
Quando eu criei a Cigarra, não sabia, mas fiquei sabendo logo na sequência que estava grávida. E tem muito que ver com essa nova Ágatha que se formou, porque quando a gente pare, a gente vira uma nova mulher mesmo. Então eu estava criando esse casulo todo, a capa do meu primeiro EP é justamente a minha barriga com uma Cigarra no meio do meu umbigo, com todas as texturas, das minhas estrias, de como se desenvolveu a minha barriga. Então acho que isso conversou de uma forma muito mágica, cheia de significados, e eu mantive, foi ficando…
Engraçado, tu explicaste que a capa do teu primeiro EP era uma cigarra na tua própria barriga, eu pensei que fosse a ilustração de uma vulva.
Pois, parece! Eu encaixei precisamente ali a parte da cabeça no umbigo para parecer um clitóris. Eu acho que tem muito a ver com isso tudo. Foi propositado.
Já lá vão mais de 15 anos de DJing. Na altura, certamente não havia o mesmo número de mulheres a produzir ou a fazer DJing. Como foi o início deste teu percurso de desbravamento de campo e abertura para outras mulheres?
Assim que eu comecei a produzir o meu próprio som, porque eu estava a tocar enquanto DJ e já era uma coisa muito pulsante para mim, era uma militância mesmo, boa parte dos meus sets eram compostos por músicas de mulheres do mundo inteiro, quando eu fiz meu som, as minhas músicas também tinham esse motte, eram uma apropriação de samples, construídas com vozes femininas, os nomes das músicas eram nomes de furacões e toda essa coisa de usar nomes de mulheres em catástrofes naturais. E aí, quando eu lancei o meu primeiro EP, fui convidada para a Tropical Twista Records a participar da label e a fazer ali dentro uma compilação só com mulheres do Mundo. E pronto, a primeira edição já foi imensa, com 20 mulheres e tal, e essa iniciativa foi muito única na época em São Paulo. Tendo contacto com a cena em todo o Mundo também foi super interessante. A partir daí eu comecei a trazer isso comigo para todo o lugar onde tocava, as entrevistas que eu dava… Essa compilação era a Hystereofônica, teve três edições e na terceira ela já era uma label dedicada só as mulheres cis e trans, que terminou há uns anos atrás. Eu venho sendo impulsionada por essas mulheres, esse input foi super forte, precisamente porque boa parte dessas mulheres que eu convidava para participar dessas compilações não tinham lançado nenhuma música ainda e era sempre nesse discurso: “e aí, bora? Eu vejo no seu set que você tá produzindo alguma coisa, eu tenho a certeza”, e elas: “pow, eu nunca tive essa oportunidade”, era justamente um incentivo para novas produtoras surgirem e hoje são produtoras grandes!
Então isso está sendo super interessante, ver os frutos do que gerou a Hystereofônica e que depois virou também um programa de entrevistas na [Rádio] Quântica quando eu cheguei aqui. Mas é isso, eu acho que a cena desde esse tempo para cá, a Hystereofônica parou porque eu comecei a ver que está tão prolífero em volta que eu fui começando a ajudar outros projetos, labels e produtoras crescerem, fazendo o meu próprio trampo também e vendo como isso foi dando mais frutos do que eu podia acompanhar enquanto label manager, é gritante a diferença! A gente ainda está gatinhando, realmente, mas já é imenso, já teve um crescimento muito grande na cena, a nível de presença, não de representação. Estamos mais presentes e ativas, mas ainda é um trabalho de formiguinha se você for observar toda a cena mainstream. Ou seja, a gente está tendo um crescimento na cena underground, nalgumas cenas, mas é uma batalha diária. E então pensando em todo o resto da representação e da presença delas também, nós ainda temos muito menos slots, muito menos cachets, muito menos visibilidade, respeito e etc.
O teu primeiro EP, “Límbica”, lançado pela Twista, surge quase 10 anos após teres começado a ser DJ. Houve algum input que te levou a iniciar o processo de produção? Como referiste anteriormente, disseste que sentias nos sets de algumas DJs que elas já andavam a fazer experiências, tu própria antes de lançar “Límbica” já tinhas vindo a fazer muitas experiências ou foi do dia para a noite que começaste a produzir?
Eu vivia com a Voodoohop Collective, estava a discotecar com Ableton e ia construindo coisas juntas, nesse processo das nossas festas e tal, a gente ia trocando ideias, informações juntes.
Então eu já ia brincando, com o Jardim Elétrico eu já tinha umas coisas, estava muito fascinada na época pela cena do Mash Up, então ia fazendo algumas cenas. E foi sempre uma militância para mim também, de apropriação de samples. E pronto, é assim, na música eu tenho um caminho que vem de percussão, de música tradicional brasileira e pesquisas do corpo e do audiovisual. Tudo isso veio criando um mundo criativo que fez sentido. Quando eu estava a fazer coisas enquanto VJ, de produção de eventos, de performance, estava tudo totalmente interligado. A forma como eu fazia música era mais ou menos a forma como eu fazia tudo em volta. Então para mim foi um caminho meio natural. Porém, sim, eu tinha um pouco mais de medo, um pouco menos de segurança e essa segurança veio com o convite da Twista.
O pessoal viu o meu set e pensou assim “hey, você já está produzindo!”, que é o que eu faço mais ou menos agora: ir trabalhando samples tudo junto e fazendo um live set. “Você já está fazendo música! Que tal formatar isso em tracks e lançar um EP?” e eu fiquei “será?”. E aí foi um processo de me encorajar, porque eu acho que quando você lança algo sendo autoral, quando a gente pensa em Mash Ups e edições, tem esse contra interatividade que eu gosto de brincar também. Mas assinar alguma coisa foi um processo que demorou um pouco mais para mim.
O teu trabalho é muito introspetivo e sempre com muitas homenagens ao feminino, precisamente para trazê-lo para um meio extremamente dominado por homens, para recuperar de certa forma a feminilidade e ocupar esses espaços. Também não te ficas só pela produção e pelo DJing, tens feito muito trabalho a nível de curadoria e produção de eventos, certo?
Sim, na verdade é isso. Já em São Paulo eu trabalhava muito com isso, fazia muita festa de rua, muitas festas grandes que fazíamos em espaços alternativos. Todo esse processo que deu em Mamba Negra agora, é fruto da gente ter vindo a ocupar os espaços da cidade. E aí, quando eu me mudei para cá, eu não tinha nenhuma garantia. Até ao meu último ano em São Paulo, eu estava trabalhando mais com editais, com outros projetos também em torno disso, mas eu tinha deixado de produzir eventos. E aí quando eu cheguei aqui, cheguei com uma mão à frente e outra atrás. Tinha 300€, mas já tinha umas ideias, já conhecia pessoas que faziam som aqui. Cheguei fazendo uma tour na Europa com o Birdzzie, que é o meu ex companheiro e pai da minha filha, tínhamos alguns bookings e tal, mas a gente sabia que ia ficar em Portugal.
Trypas Corassão, um projeto de performance e música que criaste com a Tita Maravilha, está neste momento em estúdio a preparar um novo álbum, não é?
É! A gente está finalizando o nosso primeiro álbum, que vai sair em princípio nesse verão pela Naive e a Mamba Rec juntas. É fruto do projeto Pulsar, a gente ganhou o concurso e entramos em residência para conseguir realizar o projeto. Se chama “Beleza como Vingança”, vai sair em vinil e em todas as plataformas. Aí a gente começa a girar esse show novo. E é isso, a gente já está em fase de mix e master, logo mais vai começar a ter as demos para começar a soltar, assim como o videoclipe que vai sair também no verão.
E o que mais tens preparado para mostrar ao Mundo?
Eu tenho me focado muito em trilhas sonoras, para performances, espetáculos, etc. O que aconteceu nesse percurso todo é que eu sempre fui muito conectada com performance, vídeo, teatro, dança e essa sensibilidade trouxe esse caminho para mim que me impulsionou a outros lugares de pesquisa muito maravilhosos. E aí, de uns dois anos para cá, eu tenho feito bastante sound design. E acho que a gente foi meio que lançada nessa cena, quando eu e a Tita fizemos Trypas Corassão a gente começou como uma peça e ela voou como atriz aqui também depois disso. Nossa dupla enquanto música começou em paralelo, com ela subindo na minha caixa de som dançando e depois pegou no microfone. No fim a gente pensou: “pera aí, isso aí tem um futuro!”. Logo depois ela estava-se inscrevendo num edital e a gente passou a fazer Trypas Corassão enquanto performance. A gente começou e a peça chamava-se “Trypas Corassão, Espetáculo em dois atos” e aí a gente roubou o nome da peça para ser o nosso próprio nome. Então eu fiz uma série de outras trilhas, às vezes eu estava em cena, outras não estava, mas acho que cresci muito com isso, em pesquisa, etc. e tal.
Acabei de lançar com a Troublemaker Records um EP dessas trilhas, foi uma coisa super experimental, uma ideia maluca. A Trouble me convidou no meio de muito trabalho, mas eu não queria dizer “não” porque eu amo-es, eles são maravilhoses!Então é uma cassete com duas trilhas sonoras, uma de cada lado. São mergulhos assim de 20, 30 minutos, completamente de paisagens sonoras, não são tracks muito musicais, são sons bastante imersivos.
Para terminarmos a entrevista tenho ainda mais uma questão. Também estás envolvida no projeto Piso Justo, que surgiu para estabelecer um cachet mínimo para DJs e produtores, propondo uma diminuição da precariedade das pessoas envolvidas nestas áreas artísticas em Portugal.Sentes que aqui a indústria eletrónica ainda está pouco desenvolvida e tem pouca relevância em comparação com outros países em que já tenhas tocado? Já referiste isso, mas queres aprofundar?
Sim. Eu vou pela primeira vez assumir que eu estava no Piso Justo, porque era um projeto anónimo, mas tudo bem! Com o Piso Justo a gente foi descobrindo todas as equivalências com várias outras cenas da arte que são sucateadas aqui em Portugal, principalmente com todas as questões burocráticas. A gente pode começar pelo salário mínimo em Portugal, que já é um dos menores da Europa. Apesar de haver um turismo super desenvolvido e Portugal ser um país onde as pessoas procuram diversão, é o país central de um encontro de ex-colonos, então seria um grande investimento cultural a se fazer aqui, mas mesmo assim está engatinhando. E por mais que esteja crescendo, tendo uma outra visibilidade, porque está de facto aumentando, há uma porção que está trazendo uma pluralidade que está rolando aqui. Mas ainda assim, comparando com outros países, o reconhecimento enquanto profissão não existe.
Quando eu mudei para cá e falei que ia viver de ser DJ, todo o mundo falava “não, ninguém vive de ser DJ!” Como não existe isso aqui, gente??? É uma profissão que nos outros países é respeitada, as pessoas são bookadas para girar um mercado imenso! Mas diziam “não, aqui ninguém vive disso, você trabalha em alguma coisa durante o dia e à noite se arrisca a tocar músicas”.
Quem já tinha uma cena desenvolvida aqui, ou estava em grandes clubes, ou estava conectado com uma cena de fora, que pouca gente faz isso aqui. Uma coisa que a gente aprendeu com Piso Justo, mesmo Portugal sendo um país que não valoriza, a esmagadora maioria do pessoal respondeu que não sai, não vai tocar fora. Então a pessoa fica aqui nessa precariedade, não consegue essa visibilidade e talvez a falta de noção de que o DJing pode ser impulsionado por um mercado dá uma estagnada. Não só es DJs mas também es representantes das casas noturnas que não acreditam nisso e acaba girando uma cena que não cresce muito.