O aconchego que não nos deixa dormir

Texto de Rita Ramos

Michael Cunningham tinha apenas 15 anos quando leu “Mrs Dalloway” de Virgina Woolf. O romance da escritora britânica tocou-o de tal forma que lhe serviu de inspiração para a sua própria carreira literária. Em 1998 decidiu homenagear o livro da sua vida escrevendo ele próprio um livro que se intitularia “As Horas”. O filme com o mesmo nome, foi realizado em 2002 pelo realizador Stephen Daldry. Não é normal o filme baseado no livro que por sua vez é inspirado em outro livro. É em triângulo equilátero que a história ganha forma. 24 horas de 3 dias em anos distintos, na vida de 3 mulheres que a única coisa que têm em comum é um livro e o efeito que este tem nas suas vidas. A vida da sua escritora, a vida da sua leitora e a vida da sua protagonista.

Num ponto de vista mais simplista, vivemos 3 planos de realidades paralelas. A primeira cena do filme reporta-nos diretamente para o final e é neste registo que se vai desenrolando toda a ação. Saltamos de ano para ano para conhecer 3 mulheres que se revisitam em detalhes e pormenores quotidianos e que nos passam uma sensação confortável de familiaridade. Em 1923, Virginia Woolf começa a escrever o seu mais famoso romance “Mrs Dalloway”, atormentada por fantasmas e prescrita a uma vida suburbana, luta contra si própria com a ajuda do marido devoto. Virgina Woolf, no filme “As Horas”, é magistralmente interpretada por Nicole Kidman. O seu desempenho foi de tal forma extraordinário que lhe valeu o Óscar de melhor atriz principal.

Virginia Woolf, interpretada por Nicole Kidman

Em 1951, Laura Brown vê no livro “Mrs Dalloway” uma escapatória a um casamento oco e uma vida sem sentido. Presa a uma família que não deseja e confusa relativamente às suas escolhas sexuais, Laura Brown tenta escapar mas o livro acaba por travála. Esta personagem foi interpretada por Juliane Moore que mais uma vez se afirma como uma das melhoras atrizes da sua geração. Esta interpretação valeu-lhe a nomeação para o Óscar de melhor atriz secundária.

Laura Brown, interpretada por Juliane Moore em as Horas

Já em 2001, Clarrisa Vaughn editora de sucesso e lésbica assumida, personifica a própria Mrs Dalloway ao tentar organizar uma festa para um amigo poeta doente em estado terminal. Clarissa Vaughn é interpretada, de forma irrepreensível, por Meryl Streep. Também Streep foi nomeada para o Óscar de melhor actriz secundária. Ao todo foram 9 nomeações para os Óscares (ganhou apenas um) e mais de 120 nomeações para outros prémios cinematográficos.

Com uma banda sonora perfeita, o filme não complica o que é simples, apenas explora e mostra o que atormenta e o que doí. Genialmente realizado, “As Horas” fica na história como uma das melhores adaptações literárias ao cinema. Um filme intimista, sensível e feminino que volvidos 20 anos ainda nos chega como uma afirmação de mudança das mulheres ao longo da história, mudança essa que à luz dos dias de hoje ganha ainda mais protagonismo. “As Horas” aconchega-nos mas não nos deixa adormecer.

Clarrisa Vaughn (Mrs Dalloway), interpretada por Meryl Streep

Texto de Rita Ramos para a Parq #70 Junho 2021 PARQ_70.pdf (parqmag.com)