texto por Daniel Bento
A natureza da moda é cíclica e a indústria nunca permanece estática. Mas há algo que não muda. Após duas décadas de sucesso, Alexandra Moura segue motivada pelo seu amor à cultura portuguesa além-fronteiras. O seu trabalho, que tem marcado presença no cenário de moda internacional, ainda tem muitas histórias para contar. O ser humano por trás da marca ainda tem muitas histórias para contar.
Alexandra Moura apresenta criações que, estação após estação, falam uma língua muito própria. Nesta entrevista, porém, a conversa transcende línguas. Afinal, não há nada mais universal do que a arte de criar
PARQ: Já apresentou colecções em Londres e recentemente passou a apresentar as suas criações em Milão. Sente que estesalto exigiu muitas alterações no Modus Operandi da marca?
Alexandra Moura : Não, só mesmo questões geográficas. De alguma forma, a nossa exigência, quer para uma semana de moda em Portugal, quer para uma semana de moda de Londres, ou agora a de Milão, é igual. A dedicação ao trabalho e à coleção é igual, a forma de pensar é igual. A nível de método de trabalho não mudou praticamente nada.
P: Relativamente a recetividade do seu trabalho lá fora foi sempre positiva ou houve alguma resistência
AM : Não, foi sempre positiva. Aliás, desde muito cedo, desde que eu iniciei a marca, tivemos uma abordagem ao nível de feedback do mercado internacional muito positivo. Percebemos claramente, desde esse início, que o nosso foco tinha que ser o mercado internacional e que a marca era muito bem compreendida e muito bem aceite lá fora. Por isso, nunca tivemos uma grande resistência, foi sempre algo muito fluido e positivo. A luta é mais no mercado nacional, a abertura de consciências e de atenção à moda de autor e a uma estética mais conceptual. Tem sido um caminho, mas que também já está a abrir. Agora, a nível internacional, foi sempre onde nós tivemos os maiores feedbacks.
P: Considera que a reduzida cultura de consumo de moda de autor em Portugal foi uma barreira ao desenvolvimento da marca?
AM : Claro que sim. Esta cultura de moda em Portugal é muito recente e ainda é muito residual. Embora ainda haja alguma resistência por alguns grupos, curiosamente em camadas mais jovens, esta tal nova consciência da moda, esta tal cultura visual da moda, já abriu e as gerações mais novas já começam a conhecer marcas e o que é o designer, também já procuram e já também vêm o que é a moda de autor portuguesa com outros olhos. E nós temos tido inputs e pessoas a chegarem à marca de gerações muito novas. Claramente, são o novo público que já está com uma referência e uma cultura visual completamente nova, mas, de facto, antes não havia e isso era uma resistência. Está a melhorar, está a abrir.
P: Da homenagem aos pescadores à inspiração em bairros sociais de Lisboa, a cultura portuguesa mantém-se uma presença constante no seu trabalho. Que histórias pretende contar através destas inspirações?
AM : Acima de tudo, são histórias que de alguma forma tocam e que têm algo relacionado com algum ponto que toca na minha vida, na minha pessoa, na minha forma de estar e na minha forma de ver. Portanto há algo relacionado comigo nem que seja por um sentido estético ou por uma curiosidade cultural. Acaba sempre por haver alguma ligação. Não é só porque sim, é porque realmente faz sentido e está a fazer sentido na minha cabeça aquela temática, naquele momento, e decido explorá-la através de elementos que são portugueses. Daí ter ido aos pescadores, daí ter ido a essa coleção de bairros sociais. De alguma forma, são correntes ou são temas que culturalmente são bastante ricos e onde eu consigo identificar-me e divagar dentro do processo criativo
P: O percurso da Alexandra saltou do mundo das ciências para a área da moda. Em que medida foi possível cruzar um conhecimento científico com a vertente criativa do design?
AM : O lado científico, na vertente do design, é um lado de cientista. De experimentação, de tentativa e erro, de exploração, de laboratório e de algum pragmatismo. Para conseguirmos ter resultados, a nível da ciência, temos de ter algum pragmatismo e temos de passar por tudo isto que eu acabei de dizer. Portanto, este raciocínio mais ligado às ciências, acaba sempre por me ajudar a ser mais realista quando já estou naquele momento em que já viajei tanto na cabeça e já estou tão lá em cima que, de alguma forma, tenho de conseguir arranjar estratagemas para me colocar cá em baixo e conseguir arranjar um método de trabalho para que as coisas aconteçam e fluam. Portanto, a nível de trabalho e a nível de experimentação, isto que acontece muito nas ciências, acontece aqui também, é tudo um laboratório aqui a acontecer e onde acaba por haver um raciocínio similar entre uma coisa e outra.
P: Como é que nasce cada coleção? Existe um conceito base ou este flui através da construção das peças?
Por norma, acontece sempre um conceito base e, na grande maioria das vezes, este conceito base acontece quando ainda estou a construir uma [outra] coleção. Ou seja, se eu estou numa coleção, no processo de desenvolvimento e de maturação, já me está a surgir algo para uma próxima. E isto pode vir de qualquer coisa, não há uma fórmula de criar conceitos, os conceitos vêm muito intuitivamente e de uma forma muito natural. Pode ser de alguém que eu vi na rua, pode ser de algum tema que eu tenho andado a pensar. Pode ser de uma conversa que eu tive com alguém, pode vir de alguma área científica que também me trouxe temas. Ou simplesmente de dentro de mim, ou porque são as minhas vivências, as minhas referências ou aquilo que eu senti, o que é que foram as referências visuais em algum momento da minha vida e como é que eu as interpreto hoje. Portanto, tudo pode acontecer a todo o momento, mas é sempre importante ter uma base, um conceito, para que depois toda a coleção e todo o processo criativo dance à volta deste tema e as coisas comecem a ganhar forma e coerência na minha cabeça, porque eu preciso de ter estes fios condutores para não me perder. Eu rapidamente também me perco, viajo um bocado na maionese. Preciso de ter estratégias, dentro de mim, para que de alguma forma me ajudem a focar e a canalizar um bocadinho e a conseguir levar um projeto, uma coleção, uma peça de roupa até ao fim.
P: As peças desconstruídas e o repensar do corpo são características clássicas no seu trabalho. Como é que desenvolveu este gosto por brincar com a noção de consciência corporal?
AM : Precisamente porque eu nunca pensei estar em moda, eu não faço roupa ou não penso roupa para evidenciar o corpo, só porque é giro ou só porque está na tendência. Para mim, isto é tudo um desafio, é tudo uma experimentação como se fosse num laboratório. O próprio corpo é um laboratório. Isto, de alguma forma, a forma de eu comunicar como eu vejo o corpo e como é que eu consigo ver uma volumetria no corpo, uma coisa extremamente justa ou uma desconstrução, é o que na realidade me motiva e me fascina na área da moda. É depois eu poder contar estas histórias através destas visões de como eu relaciono a roupa, a construção da roupa em cima de um corpo. No fundo, é isto que me motiva e é isto que me faz estar nesta área.
P: O seu último desfile, em Milão, realizou-se à porta fechada e foi transmitido online. Acredita que este modelo mata a essência do desfile?
Mata um bocado, claro que sim. Não vou dizer que não, porque eu própria sinto falta e sinto falta da energia das coisas em movimento, sinto falta dos cheiros, da música a vibrar e dos decibéis a vibrar dentro de nós enquanto uma peça de roupa está a desfilar. Toda a energia do próprio público, a energia dos manequins, tudo isto faz muita falta, claro que sim. E, portanto, desejo que isto possa voltar a uma certa normalidade. Porém, o lado digital também acaba por abrir outras portas e, enquanto criativos, também nos ajuda a pensar outro tipo de soluções que, se não tivesse existido esta obrigatoriedade, não teríamos feito e também foram uma agradável surpresa. Eu acho que dentro de um mal necessário que teve de acontecer, temos os pontos positivos, mas sim, mata um bocado o desfile.
P: Que novas estratégias de apresentação e de divulgação adotou para esta coleção?
AM : Tudo muito à base do digital, claro. Neste momento, e nesta coleção que nós acabamos de apresentar em Milão, pelo tempo em que estamos, nem sequer podemos pensar em coisas muito físicas nem com presenças de pessoas. Será tudo sempre de uma forma trabalhada no digital, trabalhar com a fotografia e criar conceitos para a fotografia, brincar com universos diferentes dentro da fotografia, através de montagens e recortes, whatever. Agora pode surgir muita coisa e muita coisa está a surgir dentro das nossas cabeças de como comunicar. Isto também nos dá alguma pica, sair da zona de conforto e experimentar novas coisas. E, às vezes, quando vamos experimentar novas coisas para uma área, também estamos a alimentar outra área. Por exemplo, às vezes, ao pensar em como montar uma fotografia, também posso estar a pensar na desmontagem e na desconstrução de uma peça. Isto é tudo um bocado crazy, aqui dentro da minha cabeça, mas acho que agora nos próximos tempos será todo um pensamento e um criativo muito mais digital.
P: O que mais diferencia Alexandra Moura, enquanto marca, do ser humano por trás da mesma?
AM : Se calhar, através da marca, não sou tão tímida e afirmo formas de pensar que, enquanto pessoa, não afirmo tanto por causa dessa mesma timidez. Enquanto marca, Alexandra Moura mostra-se e mostra-se sempre a contar uma história e a transmitir um conceito para captar a atenção de pessoas que pensam da mesma forma, mas Alexandra Moura enquanto pessoa é muito mais resguardada e está muito mais escondida. Sou assim e através da marca consigo ser o oposto
P: Qual diria que é o derradeiro propósito da marca?
AM : O derradeiro propósito da marca é claramente o conquistar adeptos que pensam e que vêm a vida, a moda e o mundo da mesma forma que nós enquanto marca. Nós, que estamos dentro da marca, e que a pensamos e que pensamos como comunicá-la, como construí-la. A nossa derradeira força e importância, no final de tudo, é que haja pessoas que, de alguma forma, entendem isto e que, ao entenderem, também consomem, e tudo isto faz com que haja um propósito. E que seja pelo mundo todo, que não seja só focado num sítio.
texto por Daniel Bento para a revista PARQ 68 Dezembro de 2020