Gabriela Albergaria

Texto de Carla Carbone

Uma parede pintada de azul é atravessada, em linha reta, por uma fileira de pequenos ramos suspensos. Alguns deles são provenientes de árvores das florestas de Neuenkirchen, na Alemanha, outros são oriundos das margens do rio Magdalena, na Colombia, outros ainda, recolhidos nos campos do familiar Alentejo.

A natureza, parece tratada de modo universal, com a mistura de tantas proveniências. Qualquer que ela seja, ou onde quer que ela se manifeste, apresenta leis misteriosas, e de uma diversidade sem limites. A linha reta, que dá nome à exposição, encontra-se lá, mas os ramos, autodeterminados, descrevem as suas rotas, embora dramaticamente interrompidos, embora impiedosamente decepados. Há uma tensão entre as formas ondulantes dos outrora ramos, infinitos, pertencendo ao mundo vivente, e a linha que os mantêm fixos à parede. Porém, Irredutível, a linha, no seu trajecto unidirecional, não contém a variabilidade dos ramos. Não controla a sua irradiação, o seu raiar, a sua lonjura. A “natureza detesta linhas retas”.

Numa primeira fase, assola-nos à mente o tema do antropocentrismo, e de como o Homem se convenceu de ser o único, e legitimo, decisor no destino das formas vivas. Por muitos anos entendeu ser o centro de todas as coisas naturais. A sua arrogância fê-lo esquecer que ele era parte dessas coisas. Que pertencia à natureza, e não a natureza a ele. Porém, essa necessidade de o Homem controlar, conformar a natureza em seu belo proveito, conduziu-o a um caminho sem retorno. Hoje vive enclausurado num futuro que se anuncia assombrado pela degradação da natureza, e dos seus recursos. Dos quais faz parte, e com os quais não consegue viver.

Os pequenos ramos, dispostos ao longo da linha reta horizontal, também poderiam constituir uma tentativa, da artista Gabriela Albergaria, em manter a continuidade, em vão, de um pulsar de vida, que ameaça extinguir-se, ou que foi, impiedosamente interrompido. Há ligações entre a primeira sala, e um horizonte que desponta, e desperta como um sonho, como uma janela, ou como uma porta aberta para um jardim. Liga-se assim, a primeira sala, a uma terceira sala, ao fundo. Como se nos encontrassemos no interior de uma casa, no interior de um antigo gabinete de curiosidades, por exemplo, um wunderkammern, ou, (numa versão mais atualizada), no interior de um museu. De súbito, ao fundo, avistamos, atraídos pela luz, um pequeno jardim. Um jardim na sua plenitude, ou como diria Teolinda Gersão, um jardim “onde todas as coisas dançam”, onde todas as coisas são possíveis, e onde se encontra uma grande árvore, com todas as suas irridições. Lá se avistam os ramos, com os seus desenhos sinuosos, finalmente traçando percursos perpétuos no ar. Evocando um possível “campo expandido”, ou uma mnesis, celebrando a vida, como uma névoa, em todas as suas variações.

Porém, esses sentidos da natureza redentora, e libertadora. Esse olhar de continuidade e fluidez, próprios da natureza, autoreguladora, e que é corporizado em forma de árvore, cai por terra quando nos aproximamos, e somos confrontados com esse jardim. Verificamos que a linearidade, a continuidade que originalmente atribuíamos à forma natural da árvore, não passa, afinal, de um exercicio de enxertamento. De mais uma construção humana, ou, neste caso, de um remendo. É como se Albergaria passasse o seu tempo a consertar os erros de toda uma humanidade. Num esforço permanente de expiação.

Porém tudo parece um jogo entre o natural e o artificial. Desconstruir uma árvore, para reconstruir depois, mas de uma outra forma, segundo uma lógica racional da artista, apropriativa, assente numa condensação de diferentes matérias primas, de diferentes origens, de diferentes lugares do mundo. Indusindo a uma nova cultura. Incansavelmente recriadora da natureza. Como se Albergaria, à luz de Emile Zola, entregasse também à natureza uma nova “alma e um novo horizonte”. Uma nova versão de si mesma. Procurando domesticar o que é selvagem, e estabelecendo uma dualidade entre natureza e cultura.

Os ramos cortados surgem assim, unidos artificialmente uns aos outros, nessa construção mecânica, somente atribuída ao Homem. Somente o Homem pode forçar a natureza a desviar-se do seu curso. Ou será antes que, a artista, por outro lado, pretendia reanimar justamente esse curso, invariavelmente perdido? Esse passado só reconhecido na infância, como em Alberto Carneiro?

Em torno dessa árvore reconstruída, perfeitamente manipulada pela artista, e unida nas suas partes, de forma modular, o vazio recua atrás de nós. Constituindo o único habitante do espaço que a envolve. Albergaria torna-nos hóspedes. Recebe-nos amavelmente. Oferece-nos, generosamente, esse vazio, para que o possamos recriar, preencher. Convida-nos a estabelecer um diálogo connosco, com os nossos próprios percursos, quiçá angústias? Sim, o diálogo é connosco. Ajuda-nos a estabelecer as nossas próprias experiências com as obras, uma experiência do e para o corpo. As nossas hesitações, a nossa própria experiência com a natureza, o nosso movimento no espaço, “campo (…) para deleite estético do nosso corpo”.

Texto de Carla Carbone na PARQ_71.pdf (parqmag.com)