A força do amor pela 7ª arte
Ser actor é ser uma árvore no meio da floresta, ser realizador é poder ver a floresta toda
Texto por António Barradas @antoniopbarradas
Fotografia por Lucas Fonseca @_lucasfonseca
Nasce em Coimbra a 25 de Junho de 1989, aos dois anos muda-se para a cidade Invicta, onde fica até 1996. Após o divórcio dos pais, vai viver com a avó para a aldeia de Quintãs, perto do Fundão. Nos 5 anos em que lá vive, descobre a beleza das pequenas coisas e aos 12 muda-se para a Covilhã. Surge aí um fogo mais forte por aquele primeiro amor pelo cinema, através dos filmes copiados do videoclube, graças ao acordo silencioso com o dono. Foi esse mesmo cinema que o salvou da solidão e da dura realidade de viver com a mãe numa cave com água a escorrer pelas paredes.
Enquanto os amigos escondiam e levavam jogos ou brinquedos, Edgar fazia-o com os filmes. O plano era simples: um supermercado, uma caixa de cereais e lá dentro um filme, porque o dinheiro escasseava e o cinema falava sempre mais alto. Uma janela para o mundo. Aos 14, depois de quatro anos a vender uma revista de cinema, de autoria própria, fotocopiada na escola, consegue juntar dinheiro para comprar uma televisão, um leitor de dvd e um sistema de som. A mãe não ficou radiante, mas a força da paixão pelo grande ecrã levou a melhor.
Anos mais tarde, na Escola Profissional de Teatro de Cascais, volta a ligar-se a um videoclube, desta vez trabalhando lá. A imersão neste paraíso para cinéfilos levou-o a copiar centenas de filmes, fazer scan das capas e a ser despedido no entretanto. Tudo pelo amor ao cinema.
Não há outra forma de começar, Edgar: depois de toda uma infância ligada ao cinema, podemos dizer que todos os sacrifícios e malandrices valeram a pena?
Vão valer. O cinema facilita a percepção de que o que vivemos já passou, que o que estamos a viver já foi, é uma memória. Um filme é uma memória fabricada, mas que mesmo assim faz parte do passado. O cinema oferece-nos esse presente. Os bons filmes lembram-me de que não preciso de filmes. É por isso que são indispensáveis.
No livro que estou a ler, o “Flores” do Afonso Cruz, ele diz: “viver não tem nada a ver com isso que as pessoas fazem todos os dias. Viver é precisamente o oposto, é o que não fazemos todos os dias” (Cruz, Afonso 2015). E eu quero-te perguntar se sentes que é mesmo isso.
É algo que me pergunto várias vezes, mas para o qual não tenho resposta, para ser honesto. Mas essa noção de tempo está bastante presente na minha vida e ajuda-me a definir ao que me dedico em determinado dia. Mais agora do que tinha estado no passado.
Ou seja, tu sentes que rotina é viver da mesma forma ou que tens de te forçar a “desrotinar” esse quotidiano?
Sinto que o que faço é à conta de bastantes sacrifícios. Muitos deles têm a ver com isso, com o que é a vida. E sinto que às vezes estou a sacrificar coisas que talvez no futuro me venha a arrepender. No sentido em que há experiências que eu acho que não estou a ter ou que estou a perder pelo que estou a fazer.
Sendo tu actor/realizador quero-te perguntar onde é que tu achas que vives mais? Se achas que vives mais no palco, à frente das câmaras ou atrás delas?
Tento fazer a separação o máximo possível. Varia um bocado, de tempo para tempo. Neste momento, sem dúvida, mais atrás (das câmaras). Quando estou à frente das câmaras tento estar só à frente das câmaras. O último filme que filmei, que estou a montar agora, entro também como actor, e foi extremamente desafiante. Foi essa dualidade que tive que ter, que é eu ter que estar à frente das câmaras ao mesmo tempo que tenho que estar atrás. Enquanto estou à frente, a ideia é não ter muito a noção do que está ao lado. É um pouco como aquela frase da árvore no meio da floresta. Ser actor é um pouco ser a árvore. Ser realizador é mais poder ver a floresta toda. Foi extremamente desafiante trocar de um para o outro, neste último filme.
Ser a árvore e a floresta, não é?
Certo. Portanto, depende muito. Neste momento, diria mais atrás. Estou bastante envolvido nos meus projetos, que estou a montar, que realizei. E a nível do que é ser actor, a minha paixão pela representação e o meu respeito pelo cinema são tão grandes, que já não consigo fazer ou aceitar fazer tudo aquilo que me aparece. Não me interessa. Há vários castings e vários projetos que me aparecem e já sei que não me vão dar nada, não vou gostar. Não tenho nada para dar a esses projectos, também. Eu não sou esse tipo de actor. Não sou o tipo de actor de ficar satisfeito em fazer o que me aparece. Precisa de haver algo mesmo muito interessante neste momento. Não foi sempre assim, mas é-o actualmente.
Edgar, pegando-te exatamente nisso, tu disseste que amas a representação, apesar de agora estares mais na parte de trás das câmaras, ou seja, no backstage de tudo. Mas onde é que começaram os teus primeiros passos?
A nível profissional, foi primeiro a representação. Estou a falar mesmo no nível literal e profissional. Fiz um espetáculo no São Luís, do Luís Miguel Cintra, quando tinha 15 anos, o “A Tragédia de Julio César.” A nível do que comecei a fazer em casa, acho que foi mesmo a realização. Lembro-me, aos 4 ou 5 anos, de ter descoberto que podia gravar coisas com um leitor de cassetes VHS em casa, foi a partir desse momento que tudo mudou. Comecei a gravar cenas, depois aprendi a programar o gravador VHS para gravar os filmes que queria ver e que passavam à noite, aqueles que não podia ver. Comecei a ver desde muito novo tudo o que passava na TV, e o que fazia era usar uma pastilha elástica para tapar a bolinha. Fui apanhado várias vezes com pastilha elástica no ecrã a tapar a bolinha vermelha (risos).
(risos) Hoje em dia já nem existe bolinha vermelha, eu acho.
Também acho que não (risos). Foi nesse momento que comecei a ter essa veia de realização. A primeira curta-metragem que fiz, não profissional, foi aos 16 anos, só com amigos e com a minha Handycam. Depois montei, finalizei e pus no YouTube. Só mostrei a alguns amigos. Passado um ano ou dois anos, voltei a vê-la e achei que era tão má que apaguei do YouTube. Já não tenho registos (risos). É mesmo uma lição para o futuro. Mesmo que no momento sintas que tens de meter de lado, não olhes, mas não apagues. Não sei se vou poder encontrar a curta de novo.
É engraçado dizeres-me que começaste pelo cinema, usualmente não é assim. Queria saber um bocadinho melhor sobre representar. O quão solitário é ser actor ou representar? Porque mesmo que tu estejas rodeado de pessoas, acaba por ser um processo teu. Um processo de construção, de aprendizagem. Como é que lidas com isso?
Tens razão. Eu acho que a vida em si é bastante solitária. Mesmo quando estamos acompanhados, é um acto solitário. Como é que eu lido com isso? Acho que é essa a razão pela qual estou interessado em cinema. Essa também é a magia do cinema. É a possibilidade de que, mesmo que por um segundo, consiga fazer com que estejamos mais acompanhados. Mesmo com pessoas que já não estão vivas, que viveram há imenso tempo.
Podemos dizer que representar é uma dicotomia: estás só, mas fazes para dar companhia aos outros. Quando tu começaste a ver, a representar e a fazer, o teu objetivo era qual? Era de criar histórias?
No início? Não faço ideia. Aconteceu tão naturalmente. Para ser honesto, acho que ainda estou a tentar perceber qual é a razão exacta pela qual o faço. Sei que o cinema é a minha vida.
Consigo mesmo dizer isso, porque é verdade. Para o melhor e para o pior, há dias em que detesto o que faço e não é um mar de rosas. Tenho sofrido imenso ao fazê-lo, mas sei que é a minha vida. Acho que tem qualquer coisa a ver com aquilo que tu disseste, de encontrar a conexão, de sentir-me menos sozinho e uma ligação não só com o resto do mundo e as outras pessoas, mas também comigo mesmo.
“O poeta é um fingidor que chega a fingir que é dor, a dor que deveras sente”, dizia Fernando Pessoa. E o actor? É um fingidor? Ele é o que representa? Como é que é isso?
Eu acho que sim, que o actor é o que representa, mas também acaba por se tornar o que representa e aquilo que não é. Acho que as duas coisas são verdade. É uma metamorfose, uma coisa que, dependendo do papel que estás a fazer, da personagem que estás a fazer, há imensas coisas que aprendes e acabas por crescer com a personagem. Há coisas que eu acabo por guardar da personagem e que aprendo. O oposto também é verdade.
Então cada personagem é um Edgar diferente? Ou é o mesmo Edgar?
Cada personagem tem partes diferentes do Edgar.
E que ficam contigo para depois tu seres o Edgar?
Sim, e há outras coisas, e há partes de cada personagem que ficam também em mim. Acho que é uma troca mútua, que existe entre algo fictício e o actor.
Remontemos agora aos Estados Unidos. Em 2007, acabado de fazer 18, foste para lá a primeira vez. O que é que tu esperavas? O que é que querias?
Fui aos 18, porque podia ir sem pedir autorização aos meus pais, que não me iriam dar. Não sei se o teria feito hoje… Certamente não com esta idade. Foi algo que aconteceu talvez pela inocência que tinha na altura. Ainda bem que a tive. Primeiro, fui para ver como é que era LA (Los Angeles). Para ter uma ideia da cidade. E… deixei tudo. Fui quase sem dinheiro nenhum, acabei por fazer amigos lá, que se tornaram família, fiquei a dormir em vários hostels durante muito tempo. Meses e meses. Eles tinham uma data máxima para estar no hostel, então tinha de ir trocando. Há uma lei qualquer que não permite que se fique nos hostels mais de 20 dias seguidos, então mudava de hostel para hostel por volta de Hollywood. Foi bastante difícil, mas parte foi inocência. Queria muito sair de Portugal.
E com inocência viver o sonho, certo? O teu sonho. 16 anos depois, como é que está esse sonho?
Está ótimo. Muitas coisas mudaram. O sonho foi-se clarificando mais. Embora a base seja a mesma paixão, venha do mesmo sítio e esteja presente da mesma forma. Eu adoro os Estados Unidos. Adoro. Sinto que sou metade americano em todos os sentidos. Só nos bons (risos). Cresci lá, a minha idade adulta foi toda passada lá, o meu primeiro amor foi lá, as primeiras aventuras foram lá. O cinema inclui-se também, como é óbvio. Adoro o cinema mundial, europeu, mas também o cinema americano. Particularmente o independente, com especial foco no dos anos 70.
Tens dividido a tua vida entre os Estados Unidos e Portugal. Além do que é óbvio, onde é que tu vês as maiores diferenças? Falando sobretudo de cinema.
Em quase tudo. Vou tentar ser o mais positivo possível para ambos os lados. Em Portugal há uma diferença enorme, que é o apoio público ao cinema, que é fundamental e acho que a América devia ter. Sem dúvida. Por outro lado, acho que Portugal teria muito a ganhar se houvesse incentivos ao investimento privado. A falta de incentivos complica um pouco mais as coisas, porque não há filmes portugueses que tenham feito muito dinheiro de retorno que, a nível de investimento privado, é o que atrai. Acaba por ser “uma pescadinha de rabo na boca”. Ou seja, não há investimento, não há retorno; não há retorno, não há investimento. Portugal tem um problema muito grande, que é o financeiro, em que não há dinheiro suficiente para fazer os filmes de forma certa. Não há. Mesmo com os apoios do ICA (Instituto do Cinema e Audiovisual), não é o suficiente. Acabamos sempre por ter que adaptar os projetos ao orçamento, o que limita bastante, especialmente a visibilidade depois de estarem feitos. O que acaba de sofrer mais, infelizmente, é o marketing e a publicidade aos filmes, que é essencial. É essencial não só para ter um retorno financeiro, mas para poder chamar as pessoas aos cinemas. E é um dos maiores problemas que o cinema português tem é o não haver publicidade que leve as pessoas ao cinema. Eu vivo numa bolha e os artistas e os realizadores vivem numa bolha, na qual estamos entre nós na maior parte das vezes. O que estou a tentar dizer é, para quem não está dentro da área, para eles estarem interessados em ver filmes, têm que saber sobre os filmes. E eu acho que não é feito o suficiente para esse tipo de exposição e publicidade.
Sentes que o cinema português é um bocadinho ostracizado por nós? Talvez pelos motivos que dizes, a divulgação ou o facto de associarmos a um “cinema lento” ou de serem aqueles filmes mais para rápido consumo, percebes? Se calhar falta algo intermédio em Portugal.
Sim, sim, concordo que o cinema português seja ostracizado por alguns espectadores por essa razão, já ouvi isso antes. Mas muito injustamente. Lento como? Quem diz isso não deve ter visto muitos filmes na vida.
Falemos do filme no qual participaste com o teu irmão “A Cup of Coffee and New Shoes On”. Como é que foi essa experiência? Sobretudo porque vocês, além de serem irmãos gémeos, eram ambos estrangeiros num filme albanês.
Foi intenso. O realizador abordou-nos online, estava à procura de gémeos já há algum tempo. Ele viu centenas de gémeos pelo mundo inteiro, americanos, espanhois. Contou-nos sobre o projeto. No início estava um pouco relutante em levar o projeto a sério, porque é comum ter propostas de trabalho para personagens gémeos, que não me dizem nada. Para mim não me interessa se a personagem é gémea ou não, desde que o projecto me cative.
Como foi esse enredo que te cativou?
É baseado numa história verídica de dois gémeos. As personagens poderiam ser só irmãos.
Não há nada na narrativa ou no filme que obrigue a que fossem gémeos. Pode tornar o filme mais interessante, mas não é extremamente necessário. Foi um desafio enorme. No início estava bastante assustado em fazer o projeto porque, para além da responsabilidade óbvia de fazer esta personagem extremamente complexa como indivíduo, tive que ganhar imenso peso para o papel, tive também que aprender a língua gestual albanesa, uma vez que muda de país para país.
Processo difícil, aprender uma língua não falada baseada numa língua que não conheces.
Certo, não é universal. Há palavras que são semelhantes, mas não é universal. Aprender uma língua não é fácil, foi muito intenso. Tivemos 9 meses, duas vezes por semana, a ter aulas através de Zoom, depois foram dois meses de ensaios na Albânia, com a Fundação de Surdos Mudos local, foi excelente. A partir do momento em que o Gentian (realizador) me disse que ou eu fazia o filme, ou o filme não existiria, foi aí que eu comecei mesmo a ganhar confiança no projecto e decidi fazê-lo. A coisa mais importante para um realizador é ganhar a confiança dos actores e ele conseguiu fazer isso comigo e com o meu irmão.
Numa entrevista que li do Rafael, o teu irmão, diz que recebem muitas propostas para explorar o facto de serem gémeos, mas que ele também prefere manter as cenas separadas. Pensas que é uma forma de manter mais identidade própria enquanto artistas, fugindo um bocadinho ao que é mais comum acontecer?
Não penso muito nisso. Não há nada que eu faça ou que não faça com a ideia de me diferenciar dele. Sou mesmo muito diferente. Os projectos que me interessam, não são os que lhes interessam. Não temos os mesmos gostos, a minha drive no cinema não é a mesma que a dele. Também foi essa razão que fez com que fosse tão interessante trabalhar com o Rafael num projeto tão intenso como o “A Cup of Coffee and New Shoes On”. Não faço escolhas para tentar ser diferente.
Venceste o prémio de Melhor Actor no Festival Internacional de Cinema de Prishtina com este filme. Como foi ganhar um prémio como actor num filme em que tiveste de fazer de surdo-mudo?
Vou tentar não soar cheesy de forma alguma (risos). No momento da estreia, na Estónia, no Festival Tallinn Black Knights foi a primeira vez que vi o filme e aí percebi, pela reação das pessoas, que o filme ia ter sucesso. Tocou as pessoas de uma forma muito especial. Nos 20 minutos depois do filme as pessoas ficaram a chorar. Aí pensei: foi este o maior prémio de todos. A partir daí já estava a ganhar. Eu acho que o cinema é uma forma de arte tão pessoal para quem o faz. Assim o é para mim, não só os trabalhos que eu faço como realizador, mas também como actor, preciso que sejam pessoais, que me toquem de alguma maneira. Só isso já é óptimo, mas quando começa a atingir as outras pessoas de qualquer forma, de uma forma intensa, é a coisa mais bonita do mundo.
Não foste cheesy. Quando o actor representa, representa para si, mas também o faz para causar impacto no outro.
Qualquer que seja o impacto. É, isso eu concordo
Depois do prémio, estiveste do outro lado da barricada, como jurado do Festival Fest, em Espinho, onde também apresentaste a tua exposição fotográfica “It Lasts Forever”. No cinema é mais fácil avaliar ou ser avaliado?
Ser avaliado, sem dúvida. Para mim é muito mais difícil ter que estar a julgar o trabalho das outras pessoas por duas razões: não só porque sabes o quão importante um prémio poderá ser para certos realizadores; mas também porque acaba por ser mais fácil ser crítico e analisar o meu próprio trabalho do que o dos outros. Consigo aceitar uma crítica positiva ou negativa muito melhor do que quando a tenho de dar. Deve ter um pouco a ver do meu lado autocrítico. Começo a criticar-me e ao meu trabalho muito mais quando tenho que estar a analisar o trabalho dos outros, é óptimo também para aprender imenso, porque fica muito mais fácil para mim perceber aquilo que eu faço.
Podemos dizer que te sentes mais confortável em ser avaliado, mas o que tu mais gostas de fazer é construir algo avaliando-te.
(risos) Isso mesmo. Não é um mar de rosas!
Como é que tem sido esse processo todo de representar no estrangeiro? Qual foi a melhor actriz/actor com quem contracenaste?
Esta pergunta vai ser respondida em breve. Eu juro que depois respondo (risos)
A realização é claramente a área do cinema na qual estás mais focado, certo? O We Won’t Forget (2021) foi o teu filme mais recente, e é uma curta-metragem; o próximo o You Above All, será uma longa.
Não diria isso, penso que o meu foco está tanto na representação, como na realização. Estou a co-realizar com o Luke Eberl e decidimos abordar este projeto de uma forma extremamente não ortodoxa em Portugal. Começámos a filmar em película, na aldeia em que cresci, sem termos o financiamento total para finalizar o filme. Fomos usando, e estamos a usar, o que vamos filmando para conseguir arranjar o resto do dinheiro. Por duas razões: uma delas, sabíamos que precisávamos ter alguma coisa para mostrar, para conseguirmos o financiamento que precisávamos; a outra prende-se com o facto de estarmos a trabalhar com dinheiro dos Estados Unidos também, temos mesmo de mostrar alguma coisa. Decidimos que era muito mais fácil fazê-lo e não estar a esperar três anos para ter o dinheiro todo. Filmámos durante mais de cem dias não consecutivos, durante o período de um ano. Com actores profissionais e actores não profissionais que moram na aldeia, pessoas da aldeia.
Tiveste de fazer com que as pessoas da aldeia representassem. Não foi difícil?
Não, foi muito fácil. Mais difícil o contrário. Como disse, também estou no filme como actor. Quando colocas actores profissionais com pessoas que não são actores, na maior parte das vezes acaba por se notar mais nos actores profissionais. Eu falo por mim.
Acabo por ser eu a ter que trabalhar mais para conseguir chegar ao ponto dos actores não profissionais. É incrível a naturalidade. Sabem que estamos a filmar, sabem que é uma câmara, mas para eles é como se fosse uma torradeira. Não têm a noção de que estamos a filmar para a esquerda, ou para a direita. Foi mais orgânico para eles e um desafio maior para os actores profissionais conseguir manter o mesmo nível de realismo neste filme. Porque acaba por contrastar mais a performance do actor profissional tendo uma pessoa que é tão natural como a vida real, percebes?
O que muda no processo de uma curta para uma longa? É-te mais difícil ter um plano mais restrito?
Acaba por ser o mesmo, sabes? Quando estou a filmar, e mesmo agora a montar, a diferença não é muita. Tento perceber, antes de escrever o filme ou de começar a trabalhar nele, se vai ser longa ou curta, mas as coisas vão mudando. A minha longa, se tivesse que acabar por ser uma curta, faria uma curta. Então, o que eu estou a dizer é tentar ser o mais flexível possível e fazeres o filme pelo que é. Não pelo tempo. E não pela duração, e não tentares estar preso num tempo, porque eu acho que isso vai acabar… Se estiveres preso por um certo limite de tempo, ou um mínimo de duração, vai acabar por influenciar o filme de uma forma negativa. Por exemplo, quando eu fiz o “We Won’t Forget” não sabia se ia ter 10 minutos, 15, 20, 30. Acabou por ter 14, mas a primeira versão da montagem tinha 20 e poucos minutos, e não fazia ideia, nem sequer me interessava saber.
Já falámos um bocadinho do futuro, agora voltando ao passado, como é que foi criar o We Won’t Forget? Como é que foi a tua inspiração? Como é que sentiste quando viste efetivamente que “ok, isto saiu, isto está aqui”?
A ideia aconteceu na festa de anos da protagonista, Whitney Able, com quem escrevemos o filme. Eu, o Luke e a Whitney escrevemos todos em conjunto durante 5 meses, uma vez por semana encontrávamo-nos para trabalhar. Surgiu uma conversa onde estavam vários actores amigos meus e estávamos a falar sobre o quão difícil é hoje em dia estarmos confortáveis nos bares e em discotecas, especialmente em Hollywood, porque há sempre alguém a filmar ou a fotografar. A ideia surgiu devido a esse sentimento de haver sempre a sensação de que há alguma coisa a gravar para o futuro, ou que há sempre uma gravação do que se está a passar. E depois foram vídeos, aqueles de freak outs que existem bastante no TikTok ou no YouTube. E fizemos uma mostra disso. A ideia foi comentar um pouco ou explorar a ideia do que é um espaço privado e de que forma nós somos cúmplices com o que vemos na internet ou com o que filmamos. Para mim o We Won’t Forget é um filme sobre cinema, mais de tudo. A forma como uma câmara pode ser usada com a melhor das intenções, com a pior das intenções ou sem intenção, mas é algo que acaba por ter uma moralidade por trás. O facto de usarmos uma câmara para filmar ou para fazer um filme, ou filmar os nossos amigos, ou filmar alguém que esteja a ter um ataque na rua, acaba por nos fazer parte do que está a acontecer. A nível de experiência, foi a segunda vez em que foi tudo produzido por nós, desde o início até ao final. As submissões para os festivais, ter tratado tudo para a promoção, design dos posters, trailer, foi tudo feito por nós.
Isso torna toda a experiência muito mais recompensadora, não?
Sem dúvida, sem dúvida, sem dúvida. 100%. Estou extremamente orgulhoso mesmo de mim, do Luke e da Whitney, um orgulho enorme, mas não é sustentável continuar a fazer sempre isso no futuro, porque é extremamente difícil e desgastante. Há uma razão pela qual o cinema é um trabalho de equipa, embora seja teoricamente possível fazer sozinho. É muito difícil. Filmar a longa foi muito difícil. Tanto a nível de cansaço, como de dormir duas horas por noite, de carregar, montar e desmontar equipamento, tratar dos almoços, lidar com os transportes, ir buscar os almoços ao mesmo tempo que filmava à frente e atrás da câmara, foi extremamente desgastante. Parte da equipa foi despedida no início.
Despedidas por ti?
Por mim e pelo co-realizador. No festival Fest, estava com o realizador Kenneth Lonergan a falar sobre a mesma coisa, em que ele acredita imenso em despedir pessoas quando é necessário. Porque é o melhor para toda a gente, é o melhor para o projeto, é o melhor para elas, é o melhor para nós. E foi o que aconteceu. Há pessoas que não são certas para o projecto, não por uma razão necessariamente má. A partir do momento em que sabes que o projeto vai ser melhor com determinadas pessoas não estarem presentes, ou estarem outras, tens de fazer o que é melhor para o filme. Não é uma questão de guardar rancor, de forma nenhuma.
A diferença do “Edgar Realizador” versus o “Edgar Actor” sente-se mais em que aspectos? Digo isto porque quando és realizador tens um controlo maior, ou seja, a tal “floresta” que tu vês, podes cortar aqui esta árvore, adaptar ali, mas se tu és uma “árvore”, dificilmente podes fazer mais do que dar frutos, percebes?
Quando estou a representar é mesmo tentar apagar completamente a noção do que está a acontecer à minha volta, que não esteja relacionado com a personagem. Como actor, começas a aprender muito mais sobre o que é a parte técnica de filmar, e eu acho que é o grande truque de ser actor e da interpretação. É estares no momento, é conseguires mesmo enganar-te a ti mesmo, pensando que o que estás a fazer está de facto a acontecer. É um pouco um jogo de luzes na tua cabeça, em que tentas desligar certos botões, ou ligar outros botões para o conseguires.
E tu consegues fazer isso? Ou seja, eu meto uma câmera à frente, tu és o “Edgar Actor”.
Tento, tento o máximo possível. Neste filme no qual também entro como actor foi extremamente difícil, porque fiz as duas coisas ao mesmo tempo. Vamos ver como é que vai resultar. De forma indireta, enquanto estava a fazer uma cena, houve momentos em que tive de tentar direcioná-la, especialmente com os não-atores, em que tenho que estar a fazer o personagem, mas ao mesmo tempo saber que a cena tem que ir para determinada direção para fazer sentido.
Diz-se no cinema: show, don’t tell. Onde é que tu aplicas isso nos filmes que fazes, por exemplo?
Depende muito do filme, depende da cena, não tenho uma regra fixa para o que é melhor ou pior. Prefiro mostrar mais do que contar, mas depende muito, depende mesmo. Há cenas, mesmo dentro de cada determinado filme, em que o oposto poderá ser verdade. A câmara e a forma como filmas contam bastante, portanto não é preciso ser só com palavras, há a linguagem da fotografia, há a linguagem do movimento, por aí.
E mesmo do diálogo, às vezes não se conta tudo e vai-se dando a entender.Certo, concordo completamente, 100%. É muito interessante tudo o que acaba por ficar subentendido.
Olha, aproveitando e fazendo já a rampa para o final, sei que já te perguntei como é que vês o cinema em Portugal…
Podia dizer tanto mais. E não esquecer o lado negativo do outro lado da moeda (Estados Unidos). Lá é o contrário: há margem para haver apoios do Estado, mas a maior parte dos investidores escolhem fazer tudo através de investimento privado. Acaba por não haver apoio do Estado, de todo. Isto faz com que se “matem” os filmes em que não há a mínima possibilidade de trazer retorno de dinheiro. O que na maior parte das vezes resulta em filmes que não têm uma voz própria. Tendo em conta a quantidade de filmes que é feito nos Estados Unidos, diria que, a nível de percentagem, Portugal faz filmes muito melhores, isto tendo em conta o meu gosto pessoal. Isso está diretamente relacionado com como os filmes são financiados. A América tem filmes extraordinários, principalmente do cinema independente, alguns também em Hollywood, sem dúvida, mas a nível de percentagem, diria que Portugal tem filmes melhores.
O lado negro do investimento privado, então.
Lá há muita gente a puxar para o seu lado, porque têm investimento no filme, têm um poder sobre o que está a ser feito e têm o direito de, infelizmente, dizerem “não, eu investi dinheiro, estou à espera de fazer um retorno, tenho o direito de dizer o que é que eu acho que vai trazer-me esse retorno”. A partir desse momento o filme não é de um realizador, o filme é de um realizador, de um produtor, de outro productor e de outro productor. Isso não aconteceu, nem vai acontecer, com os meus filmes. É possível dar a volta. Os contratos dos meus filmes são feitos à medida. Eu decido quando, onde e como. Sempre. Limita-me as opções financeiras claro, mas eu não tenho pressa.
O que achas que pode mudar ou que deveria mudar em Portugal? Além do óbvio, que são os apoios, como é que tu achas que poderíamos mudar o paradigma?
Os apoios precisam de ser maiores, como disseste. É vergonhosa a situação actual. O dinheiro não chega para os filmes, quanto mais para alimentar as pessoas que neles trabalham. Se alguma vez existir esse aumentodigno de menção, uma percentagem desse montante devia ser alocado ao marketing dos filmes que mais precisam. Esse dinheiro deveria ser pago pelas grandes empresas, como a Netflix, Amazon, etc. Deveriam ter esse dever de promover também o que não é só deles, uma vez que estão a trabalhar em Portugal. Tem que existir ordenado mínimo garantido para os artistas e para o cidadão comum. Essa percentagem dos apoios, sendo aumentados, deveriam ter de ser gastos em publicidade. Sendo depois esse dinheiro pago pelas grandes empresas, como a Netflix. Deveriam ter esse dever de promover, uma vez que estão a trabalhar em Portugal.
Como foi contigo?
Na última longa que fiz escrevi um outline extremamente detalhado do que íamos filmar, mas mudou durante as filmagens. Houve cenas que foram decididas no próprio dia de filmagens, houve outras cenas que não filmámos, que foram riscadas do guião, outras foram trabalhadas directamente com os actores. É isso que falta: mais espaço para poder haver financiamento para projetos não tão ortodoxos, que acabam a trazer um resultado diferente dos outros, o que é extremamente positivo.
Não achas que em Portugal olha-se muito para o que é feito lá fora, mas olha-se pouco para o que fazemos cá?
É tão verdade, eu sinto isso tanto, sinto isso tendo morado lá e cá, também. Eu e o Luke (co-realizador) chamamos-lhe o Foreign Syndrome. Isto nãoo é só em Portugal que acontece, mas é mesmo verdade, nós, os portugueses, temos esse síndrome. Como é óbvio estou a generalizar, talvez eu o tenha também. Porém há aquela ideia de que se é de fora é bom, se é português é mau, o que é tão triste e não é mesmo verdade. Nós não nos devemos esquecer de uma coisa, os filmes e a música que nos chegam cá, já foram filtrados. Os filmes de lá que saem nos cinemas cá são uma amostra muito filtrada e pre-aprovada.
Nos próximos 5 anos como é que tu te vês evoluir, o que é que te vês a fazer mais, o que é que te vês a fazer menos, quais é que são as tuas vontades, mais do que desejos, as vontades?
Estou a trabalhar em dois filmes agora, a longa e estou a fazer um documentário, que estou a finalizar neste momento também. Espero em breve ter o poder de ajudar na concretização de projectos em que acredito, de novos cineastas, sem estar necessariamente envolvido de outra forma neles.
Queres revelar sobre o que será o documentário?
Também não quero dizer. (risos)
Não queres?
Não, ainda não quero.
Podes dizer o nome?
Ainda não sei o nome. Estamos a decidir agora. A razão pela qual ainda não sei o nome é porque gosto de deixar isso em aberto até ter a certeza. É sempre possível que à medida que o projeto vai avançando, coisas novas apareçam na forma como eu próprio vejo o filme e que alterem o nome. Por isso que não gosto de dizer o título.
O teu plano é acabar as duas longas?
Estou já a desenvolver o próximo filme, a escrever… e não faço ideia. É tão difícil para mim planear.
O teu processo começa sempre contigo sozinho a escrever uma ideia que tens e depois a apresentar a alguém para ver o que pensam?
Sem dúvida começa por mim a escrever. Começa tudo por notas, sempre. Milhares. A cada cinco minutos estou a escrever ideias. Há algumas que acabam por ficar na minha cabeça mais que outras e normalmente são essas que começo a desenvolver aos bocados. É a partir do momento em que começo a ter ideias suficientes sobre o mesmo tema que penso “isto está a pedir-me quase que seja um filme”. É mais isto do que eu próprio tomar a decisão.
Começas a visualizar as palavras em cenas?
Começo a ver sinais à minha volta, no meu dia-a-dia, que parece que estão diretamente a falar do que estou a pensar. A partir daí começo a escrever o guião. Normalmente começo por desenvolver as personagens e depois vou evoluindo, mas não tenho uma fórmula. Mesmo em filmes que tenham tido um guião mais definido, como o We Won’t Forget, acabo a fazer imensa parte da escrita na montagem. É a forma como eu trabalho e é a forma como quero trabalhar por agora. Deixar completamente aberta a porta de poder alterar completamente tudo. Tudo é mutável até ser definitivo.
Então, em 5 anos, acabar as longas, acabar de escrever o novo filme, mas será cá ou lá (Estados Unidos)?
Eu? Uau, não sei. Não posso ter essas as respostas. Será nos dois. Há muitos factores no meio. Alguns a ver comigo, outros a ver com várias coisas, não sei. Esperemos por Novembro, pelas eleições nos Estados Unidos. Estou confiante que as coisas dêem certo, mas é possível que daqui a uns anos, se as coisas não derem certo, os Estados Unidos não sejam o melhor sítio para os artistas morarem. Esse seria o pior cenário, não querendo estar a entrar em pessimismos, é algo que vale a pena pensar.
Numa das fotografias que nós te tirámos tens uma t-shirt a dizer “I Love My Job” e nos dias que não amas o teu trabalho, como é?
(risos) Nos dias em que não amo o meu trabalho? Vou dar um passeio ou vejo Pasolini, Khrzhanovsky ou um Bergman. Acho que as t-shirts deviam ter estas mensagens, para nesses dias menos bons olhares para ela e lembrares-te que, no fundo, amas o que fazes.
Então amas o teu trabalho?
Sim, mas também o detesto (risos), mas o amor não é isso? Acho que o amor é ódio misturado com amor. É preciso ódio para existir amor, tenho certeza disso.
É sinal de que mexe contigo.
Isso mesmo, se não mexesse comigo não me causaria este impacto.
Obrigado!
Texto publicado em parqmag.com/wp/pdf/PARQ_81.pdf