texto por Hugo Pinto @hugopintomurtal
Final de tarde, no último dia do Meo Kalorama, as nuvens e o vento anunciam uma chuva que acabou por não cair.
No palco Lisboa uma jovem sul-africana acompanhada por um DJ de licra cor de rosa dão um espetáculo assumidamente trash. Ela é Moonchild Sannely. “Canta” sobre as lutas do bairro e os problemas da misoginia com um sotaque afrikaner agreste. A música é uma eletrónica-ghetto-chunga. Há danças provocatórias e poses gratuitas, tudo muito sexual. Questiono-me quando é que esta atitude barraca virou algo positivo.
Anyway, ainda é muito cedo para tudo isto.
Já a caminhar para as 20h, Ana Moura começa no palco principal. Há fado e ritmos africanos, bailarinos e coreografias, muitas poses e maquilhagem espessa. No fundo do palco, passam os videoclipes das músicas enquanto ela canta. Ana Moura tem uma voz decente mas este afro-fado é desadequado neste festival.
A espaços tudo aquilo podia estar numa matiné de tv ao fim-de-semana em directo do Cacém.
No final do século passado os belgas dEUS tiveram grande hype em Portugal. Houve concertos magníficos, os temas passavam na rádio e “Worst Case Scenario” virou platina. Gostávamos tanto que até comemos com outros projectos deles como os Zita Swoon.
Entretanto eles desapareceram, pelo menos para mim. E eis quando, 30 anos depois, temos o Kalorama 2024 com Tom Barman e amigos. No palco San Miguel, começaram com temas novos e foram metendo os clássicos. Eu, que abomino o saudosismo, lá cantei e dancei.
Tom Barman nunca foi novo e sempre teve aquela atitude nasty a declamar histórias de noites infames. A banda está velhinha, como todos nós que os vimos envelhecer, mas estes “”rapazes”” portaram-se bem.
Já eram 22h quando a multidão de fãs e casuais se amontoava no palco Meo para assistir à inglesa Raye. Senhora de voz poderosa e atitude lamechas, Raye já colaborou com tudo o que é estrela pop da actualidade, de John Legend a David Guetta, com Beyoncé e Diplo pelo meio.
É uma soul britânica, na linha da Amy, mas menos genuína e mais pop. O público sabe as letras e canta em uníssono. Há metais a acompanhar e uma lenga-lenga de discurso woke entre cada canção. Tudo muito ensaiado e altamente produzido.
Houve canções sobre violações encadeadas com hits de verão. Acabou pouco depois das 23h e, já na área de imprensa, ouvi de passagem que a reação do público foi “Impressionante!”.
A late night arranca com os Yard Act no palco Lisboa. Banda de indie rock inglesa que anda a promover o seu último disco “Where is my utopia”, álbum que tem dado muito que falar. Bateria, baixo, guitarra e teclados…E um vocalista qual Jarvis Cocker mas mais street. Rock honesto, atitude britpop, blues… Tudo muito indie como se espera. Há duas jovens que fazem coros e que parecem estar a divertir-se imenso. Bom concerto, um som algo derivado, mas gostei.
Burna Boy é um nigeriano trintão que anda neste circuito profissional há mais de dez anos. Faz uma fusão de hip-hop, afrobeat e r&b e tem imenso sucesso no mundo da pop. Confesso que, desconhecendo previamente a carreira deste senhor, não esperava grande coisa mas eis quando então…
Uma enorme banda enche todo o palco, há metais e coros, baterias e percussão, bailarinos e tudo o mais. O som era, lá para o meio do concerto, surpreendentemente africano. A pátria do Afrobeat de Fela Kuti sempre foi local de muita música mas não esperava de uma estrela pop tamanha dedicação aos sons mais afro da Nigéria.
Burna Boy conduz a assistência e a banda, faz piadas e confessa-se espantado com a reação do público, canta e salta, rappa e declama e tudo me parece genuíno. Volta e meia lá entra o beat pop e a coisa amaina mas foi um óptimo concerto, com ritmos nativos e batidas primordiais. Gostei mesmo.
Para terminar o Kalorama faltava Yves Tumor no palco Lisboa. Tinha altas expectativas porque Yves fez um dos grandes álbuns do ano passado. No palco, Yves alterna entre vários microfones, cada um com o seu efeito. Dois guitarristas, um qual Slash, faz solos e dedilhados metaleiros, o outro distorce em efeitos de pedal enquanto se encarrega de lançar pistas em maquinaria. Há ainda um baterista competente a compor o ramalhete.
Ora o concerto segue com aquela fusão de hard rock e maquinaria, hip-hop e spoken word. A certa altura apercebi-me que, embora esteja a ouvir uma linha de baixo e uma voz feminina, não vejo mais ninguém em palco. Ou seja, há várias pistas pré-gravadas e o quarteto toca e canta em cima delas. Tudo isto é assumido mas ao fim de três pregos que obrigaram a recomeçar o tema, o próprio Yves Tumor fez a piada:”We got paid too much for this shit!”. Confesso que tudo isto não me caiu bem.
Sim, Yves é um ótimo frontman e as músicas têm alto poder, mas senti que faltava ali alguma coisa. O cansaço de 3 dias e a hora tardia, já passava bem das 2 da manhã, também podem ter contribuído para isso. Uma pena.
E o Kalorama valeu a pena? Claro que sim. Para o ano há mais.