Um novo corpo negro

Sudan Archives é Britney Denise Parks, vocalista, violinista, produtora que há um par de anos acusou nos radares mais sensíveis graças a algumas indicações soltas dadas através da conceituada Stones Throw de Peanut Butter Wolf. Agora é nessa mesma editora que se estreia com Athena, belíssimo disco entre a folk e a soul e o hip hop que a anuncia como um sério valor a ter em conta para o futuro.

Parq – Diz-se que não devemos julgar um livro pela capa, mas será difícil ignorar a capa do teu disco [Athena]: o corpo negro enquanto beleza clássica; é algo muito poderoso. Qual é a ideia subjacente?

SA (Sudan Archives) – É como dizes: o que é beleza clássica? No meu mundo, parece ser algo muito específico, está projectado para uma beleza branca, como o que surge em revistas e programas televisivos. A diversidade parece ser pobre em formas de beleza. Algo que abordo no Athena é o colorismo, ser uma mulher negra de pele escura, por experiência. Já me disseram coisas estranhíssimas: “Meu Deus, és tão bonita para uma mulher negra!” ou “és mesmo gira para uma rapariga de pele escura!” Isso é de doidos.

Parq – A tua editora descreve-te como uma violinista, uma cantora, compositora e produtora — o que quero saber é se divides esses papéis de acordo com uma hierarquia específica ou se, sendo tudo parte da mesma persona artística, não dás mais importância a um do que o outro.

SA – Quero dizer que me vejo como violinista em primeiro lugar, mas também como desenhadora de paisagens sonoras. Ainda não sou mestre, mas aquilo em que sou é a saber exactamente o que quero. Antigamente, nunca sabia o que queria para a minha música. Agora, sei precisamente como quero a minha produção, que instrumentos desejo. Usei o violino como base desse mundo: sinto que construo mundos através de sons.

Parq – É uma boa imagem. O violino é um instrumento que está ligado à experiência negra na América, mas não necessariamente nos últimos tempos. O que te fez pegar nesse instrumento?

SA – Foi quando eu era muito nova, a ver pessoas tocar fiddle music (música de violino. A minha mãe disse-me que, com oito anos de idade, quando vi pessoas a tocar fiddle music e música irlandesa de jig [jig music], e quando vi isso, implorei-lhe por um violino. Foi assim que tudo começou. Tocava muito na igreja e isso deu-me confiança, porque aprendi a tocar só de ouvir. Isso fez-me criar as minhas próprias melodias e canções.                       

Parq – Conseguiste colaborar com a Wilma Archer e o Paul White. Como chegaste até estes dois produtores?

SA – Tinha a mente muito aberta. Quando as pessoas chegavam de Londres, estava simplesmente aberta para as conhecer. O Archer e o White são multi-instrumentistas: tocam bateria, guitarra, tudo. Poder colaborar com pessoas assim é muito fixe, ambos têm uma musicalidade robusta e uma abordagem electrónica experimental. Fazer música não exige esforço, percebes?

Parq – A tua ligação à Stones Throw foi algo surpreendente. Como conheceste o Peanut Butter Wolf? Achas que te enquadras no plantel?

SA – Conheci-o através do Matthewdavid, que é A&R. Tornou-se conhecido com um projecto de beatmaking. Estava um pouco nervosa para lhe mostrar a minha música. Quando finalmente o fiz, a ideia era lançá-la na Leaving Records, mas o Chris e o Matthew pensaram que a Stones Throw seria uma opção melhor para mim. Conheci-o no estúdio porque estava a mostrar música ao Chris, ele entrou com cão, a não dizer muito e bazou. Lembrei-me posteriormente dele.

Parq – Imagino que também possamos ler a capa do álbum como metáfora para como expões as tuas emoções nas letras. Fala-me um pouco dos temas deste novo disco.

SA – Estou a cantar temas como a dualidade: o que é certo e errado, bom e malévolo, lidar com esses lados. E talvez confrontação,  ter de lidar com eles e não fugir. Antigamente, eu falava de forma mais suave, mas para fazer uma deusa, tens de ser austera e agressiva, confrontar os teus problemas. Sinto que o colorismo é um problema mundial hoje; não há culturas que valorizem a pele escura, e parece que todas valorizam o quão menos escuro és. As pessoas advertem sobre poderes ficar demasiado bronzeado — coisas que te fazem crer que, para seres bonito, tens de ter uma pele mais clara: falo disto porque, apesar de não passar por essas coisas, senti que não tinha representação.

Texto de Rui Miguel Abreu para a revista Parqmag, Dezembro de 2019