texto por Carla Carbone

fotografia por Bruno Mesquita

O tema da água foi sempre central na vida humana, e moldou a sua subsistência.

São vastas as histórias da mitologia em que divindades, sobretudo gregas, teceram enredos com o mar, e com os rios, tentando domá-los, ou simplesmente procurando atravessar as suas vagas. Umas vezes o mar trazia-lhes boas novas, outras vezes um inimigo, fantasmagórico, que os desafiava, pondo em perigo as suas existências, ou a dos humanos.

Pela incomensurabilidade do mar, pela imprevisibilidade líquida, as histórias, na tradição humana, foram registando, no tempo, a importância da água, e a impossibilidade de, o ser humano, viver sem o seu recurso. Havia um respeito pela sua força, pelo desconhecido, e não se ousava tanto desafiar a sua vontade.

É impossível viver sem água, o ser humano é constituído por 65% de água, os outros animais, ainda mais – estes, tal como a água, também foram sendo esquecidos, e a diversidade da natureza, anquilosada pela crença destruidora, e pelo princípio do etnocentrismo.

O homem também se fixou, no tempo, nos lugares onde a água foi abundante, facilitadora da irrigação dos solos, e do transporte de mercadorias. Onde rareou, as populações não sobreviveram, ou tiveram que se deslocar para regiões onde oferecia melhores condições.

As malhas urbanas atuais são exemplos corpóreos dessa condensação de populações ao longo da história.

Todas as actividades humanas precisam de recursos hídricos. E, tal como a circulação sanguínea num corpo, é matéria-prima para a indústria, e um meio para gerar energia.

Mas a água não tem sido, apenas, alimento para o corpo, também nela existe uma dimensão simbólica e psicológica, que infelizmente tem vindo a degradar-se, sobretudo na era industrial. Com a tomada de consciência da situação ambiental, que agora se agudiza, fruto de uma investida sobre o planeta, (muito por conta de um capitalismo furioso que se enfatiza, e a crença da superioridade do homem sobre a natureza), o último Porto Design Biennale (2023) teve, como tema central a água.




Caretos de Salsas, Portugal Charles Fréger , 2010

Fernando Brízio, o seu principal curador, comissariou uma grande exposição na Casa do Design, chamada: “Petrichor, o cheiro da chuva”. No seu cerne estava a reflexão em torno da água, como um recurso que precisava de ser entendido, compreendido, e estudado. Na exposição Brízio questionou: “O entendimento que temos da água é, de um modo geral, superficial, redutor: vemo-la sobretudo como um recurso, uma superfície líquida aprisionada, separada da restante matéria. Isto restringe o modo como nos relacionamos com ela. Prevê-se que em 2030 haja um défice de 40% de água em relação à procura. Como podemos cuidar do que não conhecemos bem?1.

Por este motivo foi constituída uma plataforma-laboratório transdisciplinar, no tempo da exposição, de observação, reflexão, e experimentação, onde as várias dimensões da água, como a propriedade orgânica, visível, invisível, entre outras, foram trabalhadas.

A exposição encontrava-se dividida em vários temas: “Bestas Prometeicas: Formas do humano; Realidade Mágica: Viver com o des/conhecido; Corpos de Água: onde a água se torna comum –Matéria vegetal, carne, mineral; paisagens Dinâmicas: Margens que dançam, fronteiras que não existem; Rios voadores: Repensar as representações da água; Geologias Afetivas: A história viva de uma receita”1.




Vestido Trompe l’oiel, Constança Entrudo, 2021

Fernando Brízio, em resposta a uma situação preocupante, como a escassez de recursos hídricos, que se agudiza cada vez mais no mundo, procurou, de forma responsável, e junto da sua equipa, “apresentar estratégias que contribuam para reconhecer, reparar, restaurar e pensar novas relações com o mundo”2, bem como “projectar melhores e mais eficientes usos da água”3.

Nesta preocupação em recuperar, consertar uma condição ambiental que nos afecta a todos, Brízio, apela a uma conexão com o mundo, no sentido de “desenvolver práticas que pensam em corpos colectivos, em cooperação, em coexistência. Práticas de empatia e partilha, de preservação e cura, de hidratar, nutrir, reparar, falar com estranhos, práticas de cuidado com o outro, gestos essenciais à nossa existência”4.

Na exposição mostram-se trajes espaciais e comparam-se os mesmos com vestes de peles de animais usadas por Xamãs. Uma evocação às práticas mágicas e espirituais ancestrais, como a dança da chuva, que, através de um ato ritualístico, procuram diluir a matéria, e irradiar no espaço cósmico. Essa perspectiva incorpórea sobre a matéria também pode ser encontrada num renovado olhar sobre a água. Água que se dilui e atravessa os corpos, como elemento transformador, que confere vida.

Sucedem-se máscaras de caretos de Bragança, chocalhos, alicates articulados, um incrível capacete KM 97 W/MWP, de Kirby Morgan, rostos evocativos de tempos longínquos e práticas rituais.




Beauty Hairbrush, Bless ( Ines Kaag e Desiree Heiss), 1999

The Book of Mud, ou Livro de Lama, do artista Ali Cherri, surge exposto e relembra-nos o poder da água como agente de infortúnio, mas também a capacidade de nos fazer recordar a nossa finitude e a impotência face aos elementos da natureza, ou, ainda, o desejo do Homem em proteger-se dela, ou de a controlar.

O fogo como exemplo da sobrevivência do homem; a exposição deste elemento aos macacos de Inuyama como estudo do comportamento dos animais; o recurso do mesmo em ritos; são tudo exemplos que se podiam encontrar na exposição.

Figurava também a alusão à tradicional choupana móvel do pastor de Lagarinhos, em Gouveia, espécie de arquitectura móvel que protege do clima; a menção ao projeto Fog-X, do Lexus Design, 2023, que consiste no fabrico de um casaco que tem a capacidade de recolher 10 litros de água; a jangada de metal; o lavatório Sabão Azul e Branco, 2022. A mesa suspensa, negra, com objectos do Studio Boir, 2021; a Salad Sunrise e a Postage Scale, da Droog Design, ou ainda a bilha de segredo, oriunda de Miranda do Douro. Entre muitos outros objectos, susceptíveis de promover a nossa reflexão sobre a água.

Também são impressionantes as imagens microscópicas produzidas por Emoto, sobre as configurações da água nos diferentes ambientes sonoros.

@casa.do.design

texto publicado em PARQ_80.pdf (parqmag.com)

1Folha de sala da exposição “Petrichor, o Cheiro da Chuva”, 19-10-23 a 03-12-2023, Porto Design Biennale 2023, Casa do Design, Matosinhos. Pág. 3