Uma conversa interessante com Leonor Silveira
texto de Alex Couto
fotografia de Maria Rita
Foi com esta citação notável que começámos a conversa com Leonor Silveira, actriz que dá uma cara ao trabalho de Manuel de Oliveira e, por extensão, a todo o cinema português.
“Uma conversa é sempre interessante, sempre. A partir do momento em que há vontade de a ter.”
Falamos do mito inicial que sempre foi verdade? Antes de acabar o liceu, Leonor Silveira acompanha uma amiga a uma audição na Madragoa Filmes — seria este o momento em que tropeça numa colaboração com o maior realizador do nosso cinema. Foram 18 filmes com Manoel de Oliveira.
“Eu acompanhei uma amiga a uma audição na Madragoa Filmes. Pediram-me para cantar. Eu disse que só sabia cantar os parabéns.”
Pelos vistos, a escolha da canção não foi um problema. Leonor não estava planeada nas audições e, por esse motivo, a sua audição foi parar à cassete das morenas, mesmo no fim (e mesmo quando era loira).
“Fiquei no final da cassete das morenas. O Manoel estava em conversações e a cassete das morenas continuou a dar. Quando chegaram ao fim da cassete e apareci, o Manuel disse que era ela.”
Por muito verdadeira que seja, é uma história que mantém os contornos de mito urbano, mas quando partilho esta sensação com a Leonor, ela conta-me um verdadeiro mito urbano acerca do seu trabalho (e que talvez esteja a ser escrito pela primeira vez).
“Há outro mito urbano, aquele de que não existia. Foi o Manoel que ouviu na Biennale. Vivia algures no interior do Portugal e não era actriz.”
Uma conversa com a Leonor Silveira é sempre uma conversa que contempla o mestre. A reverência como fala de Manoel de Oliveira revela um cuidado que podia, e devia, ser transversal às audiências portuguesas. Por muito duro que seja o seu cinema, é também um monumento. Por nós, podíamos passar o dia a ouvir as suas experiências com o realizador.
“A direção de atores do Manoel de Oliveira não é um processo a que um actor possa estar habituado. Havia uma rigidez e uma teatralidade, mas essa mesma rigidez punha-nos num espaço que era propício para a interpretação.”
E mesmo quando o cinema de Manoel de Oliveira passou a poder ser caracterizado pelo olhar da Leonor Silveira, a actriz continuava a acarinhar cada convite dele para uma nova colaboração.
“Era sempre uma honra quando o Manoel de Oliveira me chamava para mais um filme. É bom não darmos nada por garantido.”
Perguntamos a Leonor se ainda se sente #blessed por ter tido a oportunidade de trabalhar dezenas de vezes com o maior realizador do cinema português.
“I was blessed with it.Por ter sido a actriz do realizador Manuel de Oliveira.”
Quando lhe perguntamos qual foi a maior lição que retirou desta experiência, densa e desenvolvida ao longo dos anos, tem o cuidado de nos inspirar.
“Ser esponja. Os espaços onde estamos, os cheiros, ser humano. Sermos humano para começar. Nós temos de absorver até ao som das nossas palavras, os sons à nossa volta, o que temos de nos aproximar e de nos distanciar. Um realizador sabe o seu filme e onde quer chegar e conta com a nossa ajuda. Como animais que somos, aproveitar tudo aquilo que está à nossa volta. Os nossos colegas, quem nos toca. Com a exigência vem também uma certa simbiose.”
Como queremos conversar com a Leonor Silveira sobre moda, mas também queremos continuar a ouvi-la acerca do seu processo, levamos a conversa para o figurino, para este espaço estético tão peculiar.
“O boneco, o figurino, o fato em si ajuda-nos a compor toda a nossa parte de acting e a construir o personagem com a sua movimentação. A roupa pode determinar isso ou fazer o oposto e atrasar também, como um espartilho. O colorido dá-nos uma energia ou retira-nos um universo. É essencial que o figurino se encaixe no que o realizador procura do actor e permite ao actor construir a personagem.”
Sobre moda, apresenta-nos um ponto de vista complexo, observador, mas também empírico e pessoal. Comenta connosco como é preciso ter uma certa maturidade para a saber encarar, para não deixar a moda fazer de nós o objecto.
“A moda pode ser absolutamente mágica para uma mulher ou uma arte extremamente violenta. A moda pode ser uma forma de nos sentirmos princesas, rainhas e dragões. Ou dragões, príncipes e reis.”
O seu gosto é o reflexo de uma carreira em que a moda foi sempre um acessório, uma ferramenta com que enfrentava o mundo enquanto promovia o cinema português por cá, assim como além-fronteiras.
“Eu revejo-me nos traços clássicos, em peças mais tranquilas e menos extravagantes e não há nada que me interesse no decotado, só no traço e no desenho que permitem a figura e a elegância.”
Tem uma noção muito presente de que a moda pode ser a nossa aliada, mas que também pode ser nossa inimiga. A preocupação com a próxima tendência e com o conhecimento total podem tornar-se fontes de ansiedade, até numa arte que nos ajuda a navegar o mundo.
“A moda pode nos violentar na forma em que não encaixamos, que não sabemos o suficiente. Quando se torna uma obsessão. Deve haver sempre um interesse orgânico, aquilo de que se gosta.”
Ao longo da sua carreira, Leonor foi distinguida com a Ordem do Mérito, foi nomeada Membro da Academia de Belas-Artes de Paris e Dama da Ordem das Artes e das Letras pelo governo francês. Perguntamos-lhe sobre a importância destas distinções.
“As minhas distinções? São muito boas é para o cinema português.”
Quando lhe perguntei se se considerava uma embaixatriz do cinema português, devolveu-me a pergunta. A sério? Posso responder? Não tenho dúvida nenhuma de que sim. A Leonor deixa-nos com mais um episódio sobre o quanto nos representa:
“A fotografia da Ema do Vale ter sido escolhida para poster da Quinzeine des Cineastes coroou vários filmes portugueses presentes nessa constelação. E tirámos uma foto em frente da cara da Leonor Silveira, termina aí como um símbolo ou uma imagem representativa do cinema português.”
Ainda tivemos tempo de conversar sobre a sua passagem para a televisão, depois de uma carreira longa, dedicada ao cinema. Apesar da parceira com Manoel de Oliveira ser a mais longa, Leonor também trabalhou com João Canijo e João Botelho, entre outros. Como foi essa transição para a televisão?
“A primeira vez que eu fiz televisão foi com a Terapia. Eu conhecia a série do formato americano do Gabriel Byrne. Ter sido a Sara Carinhas a chamar-me para a Terapia deu-me logo vontade de entrar na série. Foi um início mágico.”
E, numa nota final acerca dos sacrifícios que ser um criador artístico em Portugal podem implicar, a Leonor apelou à resiliência.
“Eu acho que os criadores em Portugal e no cinema sobretudo, precisam de resiliência. É quase uma fé, em si, e em que vale a pena continuar. Se fosse pelo lado financeiro, já tinham desaparecido. Tem de haver gosto na arte. Crença, resiliência, fé.”
Para acabar, deixa-nos com um conselho para o nosso próprio progresso. Numa era de redes sociais, em que parece cada vez mais importante ser capaz de fazer barulho, Leonor remete-nos para o caminho oposto, para absorção e para a audição atenta do outro.
“Aquilo que se perdeu e que nos enriquece muito, é saber ouvir o outro. Saber ouvir — isso está ligado à curiosidade, à vontade e à humildade. A construção de um caminho, através de saber ouvir. E isso liga-se ao audiovisual, ao cinema, à pintura, à poesia.”
fotografia Maria Rita
direção e styling Tiago Ferreira
make up, cabelos Paulo Fonte assistido por Joana Espargo
assistentes Jennifer Berlin e Tatjana Jourdain
entrevista e produção fotográfica para parqmag.com/wp/pdf/PARQ_80.pdf