Para a Dulce e para o Jaime,

Texto de António Barradas @antoniopbarradas

As notas juntam-se. Alinham-se os tons. A música fica composta.

Assemelhavam-se a montanhas em ombros erguidos. Faziam força, para assentar o seu peso, enquanto os faziam descair, por estarem demasiado pesados da fadiga de não conseguirem suportar o que carregavam. Não são muitas as vezes que o quotidiano se cala. Há vozes a cirandar, ruídos em estado de mudança, memórias em recipientes partidos e gritos de revolta a soltarem-se do colete de forças. Uns com uns decibéis acima da média, outros inaudíveis, tal qual apito canídeo da nossa própria realidade. A dureza dos dias dita sempre o timbre com que os sons ecoam. Somos o maestro da desgraça ou o tenor da alegria. Mão direita a eito, mão esquerda preparada para marcar um ritmo diferente e a batuta é arrastada pela tristeza que se alastrou com a notícia.

A música pára.

Nem mais uma nota. De mi, mais nada. Deles, veio dó. Novidade em forma de bala, dada sem agrave para o apelo que havia para que não surgisse. O mundo caiu. Ruiu, tal e qual a vida não nascida. Perdeu-se o sossego de um futuro próximo pintado com dentes a mais. Não se ouvia nada. O abafado som do silêncio eram as margens do desconforto que ali se sentia. Qualquer palavra dita não ia mudar o curso do rio. Tenta seguir-se. Fosse para onde fosse, queríamos todos não estar ali naquela espécie de barco à deriva, desejámos não saber o que era esta estranha forma de não haver vida. A Oeste, a tristeza de uma dor irreparável; a Este, preocupação de ter a extensão de abraço necessária para os albergar. O tic-tac começa e a solução não chega. Soluça-se, por se sentir a dor alheia. Forjam-se expressões genéricas, procuram-se conjugações frásicas leves, mas tudo volta ao ponto de uma falsa partida.

Voltam a ecoar uns parcos acordes menores.

Tentei afinar a ideia certa para não sair fora de tempo, enquanto mandava aquele tempo fora. O frame é irrepetível. Foi capturado por piscares de olhos infinitos e lágrimas de ideias inacabadas, a perderem-se num rosto cada vez mais esguio da tristeza. Os braços estavam abertos, o abraço em punho e a alegria longe. Uma simbiose de tristeza alastrada pelo amor. Esta dualidade tão estranha, anda sempre de mãos dadas, até as mesmas ficarem suadas e terem de se separar.

Sem compasso certo, tenta harmonizar-se uma melodia.

Sofremos para não permitir que nos tomem a bastilha. Erguemos muros à volta do bastião, sem nunca deixarmos que o vejam. Desguarnecido, frágil, em constante revolta interna. Por fora, duro. Resistente aos temporais barulhentos a não levarem de rajada o castelo de palitos construído no interior. Teremos sempre o coração fora de nós, onde depositamos o amor. Sabemos protegê-lo quando está no peito, não temos qualquer controlo na altura na qual ele foge do sítio onde mora. Deixamo-lo ir, porque queremos dividi-lo, mas não estamos preparados para sentir tanto a dor dos outros, que será invariavelmente nossa, também.

Dá-se lugar aos solistas, com a magia nos dedos, a tentarem fazer desaparecer a pesada sinfonia na sala.

A filha deles não nasceu. A Dulce e o Jaime estarão irremediavelmente doridos pelo Fado que lhes tocou. Nunca esquecerão o momento em que perderam o motivo para cantar. Durante uns tempos, não vão acompanhar a guitarra e o xaile preto estará indeterminadamente pousado nos tais ombros pesados do esforço da vida. Não entrarão em uníssono, cada um terá o seu ritmo, cada qual o seu tom. Um dia a música vai voltar. Os acordes estarão ordenados, as vozes afinadas e a cadência da melodia fará todo o sentido.

Até lá,

Estarei sempre aqui, com a batuta em riste, a impedir a música de parar.