Texto por Alexandre Couto
Fotografia por Maria Rita
Artigo publicado em parqmag.com/wp/pdf/PARQ_79.pdf
Tivemos o prazer de conversar com uma das actrizes mais reconhecidas de Portugal, assim como uma das mais acarinhadas. O trajecto de Maria João Bastos na televisão e no cinema português é um percurso cheio de pontos altos e as suas ideias sobre vida são sempre interessantes. Uma entrevista onde falamos dos seus papéis, da sua experiência na moda e de saúde mental, tanto da Maria João Bastos, como das suas personagens.
Ao longo dos últimos vinte anos, Maria João Bastos tem apresentado personagens que não só chegam às pessoas, como ecoam nelas. Através de diversas épocas, universos e abordagens, temos encontrado o seu talento em projectos díspares. A forma como Liliane Marise foi celebrada é um caso de estudo na recepção de uma personagem em território nacional.
Tudo isto parece ser natural para Maria João, são os seus ossos do ofício e falar sobre eles é uma das melhores formas que tem de aproximar as pessoas do seu trabalho. Face a este historial de sucesso, tento começar a conversa por essas pessoas que não existem, mas que todos nós conhecemos. As personagens, claro.
Qual é o seu processo para as conhecer melhor?
— Começo por perguntar coisas básicas que me podem ajudar a construir a estrutura da personagem.E quando eu digo básicas, digo básicas. Se o teu pai está vivo, se a tua mãe está viva. Isso pode nem ser dado na história. Portanto, tentar construir o background da personagem é importantíssimo.
— Todas as personagens têm uma vidaaté o momento em que a história começa a ser contada. Essa vida, como na nossa, é influenciada por aquilo que foi o nosso passado.Essa estrutura do passado da personagem, para mim, é muito importante.
— Faço sempre essas perguntas sobre o que é que foi o passado desta personageme como é que esse passado interfere no presente e nesta temática que estamos a falar.Só depois, quando encontrouma razão, é que começo a fazer perguntas mais profundas sobre essa temática.
Começou bem a conversa, estas abordagens processuais lêem-se como conselhos imperdíveis, se calhar até pedagógicos demais para os estarmos a amplificar de forma gratuita. A naturalidade da Maria João Bastos neste tema parece facilitar muito a nossa compreensão.
— Uma dascoisas mais importantes para encontrar com as nossas personagens é a empatia. Porque nós nem sempre concordamos com as nossas personagens. Ou com as atitudes delas. Quando faço de vilã,tenho de encontrar razões que me façam compreender ou, pelo menos, ter empatia com aquele sentimento que a personagem está a ter.
— Qual é o caminho que levou até ali e o porquê daquela atitude. Encontrar até o espaço em que a personagem tem essa atitude e não gosta de a ter. Porque as contradições nas personagens são muito importantes. Eu adoro.
— Tentarmos limpar uma personagem, tirar-lhe as contradições é matá-la. Matar a humanidade, não é? Todos nós temos que ter um bocado de incoerênciae há coisas que até nós próprios nem percebemos e o bonito da vida e da idade é ir crescendo, ir descobrindo.
Acrescento — E da terapia também. — o que foi uma tentativa de piadola face ao clima cultural, mas a resposta da Maria João fez com que tivesse valido a pena.
— Exatamente, e da terapia também que é ótimo e inclusive é um ótimo trabalho para fazer com as personagens.
— Eu já fiz terapia em personagem. E no Brasil consegui fazer as consultas sem o terapeuta saber que eu não era aquela pessoa. Foi no início de lá estar, não me reconheceu. Há 20 anos que eu vivo entre o Brasil e Portugal, mas aqui seria muito difícil.Quando faço aqui, e já fiz várias vezes terapia para as personagens, assumo que sou actriz e que vou fazer esta personagem. Digo que quero fazer terapia para a personagem. E pronto, vou com os dramas dela para o consultório.
Genial, não é? É por momentos como este que devemos sempre olhar para dentro da arte. O mergulho no processo de um criador pode servir para pormos o seu trabalho num pedestal ainda mais alto, fruto da inventividade que usou para o alcançar.
A conversa de consultório permite-nos passar para a saúde mental de quem está do outro lado destas percepções provocadas pela representação. Até porque se a Maria João Bastos faz terapia para as personagens, também deve ter uma opinião acerca da importância da saúde mental para os humanos que as inspiram.
— Não tenho trabalho com a minha saúde mental por ser actriz, tenho cuidado com a minha saúde mental por ser humana.
— Acho que todos devíamos ter, e por viver num mundo onde somos sempre tão desafiados a tantas questões, é muito importante que nos questionemos, que nos alimentemos de coisas que nos fazem bem, de informação de qualidade. E espiritualmente também, procurar aquilo que nos faz bem, procurar aquilo que nos faz dar importância às coisas que realmente têm importância. Aceitar errar, aceitar ter errado.
— Da mesma forma que eu tenho a preocupação de ir ao ginásio, tenho preocupação em cuidar da mente.Desenvolvi isso.Sabe bem termos ferramentas para nos conhecermos e para sabermos viver melhor, para saborearmos mais a vida, tem a ver com o auto-conhecimento.
Agradecemos os conselhos. Depois de termos falado sobre o processo de construção de uma personagem, tentámos explorar a proximidade entre o universo da literatura que ajudou a levar para o cinema, através de papéis em filmes como os “Mistérios de Lisboa”, o “Ecuador”, e agora em “Sombras Brancas”, realizado por Fernando Vendrell e escrito por Rui Cardoso Martins. É inspirado pela vida do José Cardoso Pires.
— O filme é de uma beleza enorme em todos os aspectos, a escrita, a realização, a fotografia. O Morisson faz um trabalho absolutamente sublime. Consegues te esquecer e consegues acreditar em tudo aquilo que estás a ver. É inspirado no “De Profundis, Valsa Lenta”, o último livro que ele escreveu, depois do problema de saúde dele. A minha personagem é a Alexandra Alpha. Como se entrasse na vida dele, uma personagem da história. Vale a pena ver porque é bom cinema e porque é sobre José Cardoso Pires, que merece que toda a gente o veja.
Não é difícil passarmos deste tópico para a relação de amor com os livros, um tema habitual nas conversas com Maria João Bastos.
— Vivo a ler livros, como toda a gente.Éincrível e por isso é tão importante ler.Porque nos faz trabalhar a nossa cabeça em coisas muito importantes. E a nossa imaginação é das coisas mais importantes que temos na vida. Faz-nos ir a muitos lugares. E acreditar em muitas coisas. Acreditar é o que nos faz muitas vezes mover para conseguir atingir os nossos objetivos.E eu acho que isso está tudo ligado.
Ao falarmos de livros, é fácil perceber como pensa nas personagens também para o seu trabalho de actriz.
— Amo o trabalho da Sally Rooney. E portanto adorei o Normal People, que deu uma série brilhante. Portanto também faria aquele papel.Eu acho que vivo tantas personagens que estou a ler,que depois acho, no fundo, que gostaria de interpretar todas.
— Um filme que já foi feito, e que foi um dos meus livros preferidos, é o “Ensaio sobre a cegueira”.Adoraria fazer. Foi a Julianne Moore que fez, eu dava um jeitinho. Dava um jeitinho, porque não é que fizesse melhor que ela, que é uma das minhas atrizes favoritas.
Rabo de Peixe foi outro dos assuntos que não conseguíamos evitar, nem se quiséssemos. A série, cujo sucesso foi tal que se tornou um fenómeno, conta também com a actriz no papel de uma detective em missão nos Açores. Perguntámos qual foi a reacção face a este sucesso?
— Foi de euforia. Uma grande felicidade. Senti um certo patriotismo.Portugal pode.
— E foi vivido assim por nós.Temos um grupo no WhatsApp. Não foi nada individual, em nenhum momento.Mais um país, mais um top, mais um número um.Vai abrir portas para outras séries, vai abrir portas para outras pessoas. Agora vema segunda temporada e ficámos mesmo muito, muito, muito felizes, sentimos que era uma coisa nossa, de todos.
— Eu ficava muito feliz ao ver as pessoas, quando lia comentários e diziam como “a nossa série está ótima”.Houve uma coisa de patriotismo muito, muito importante. Mas não foi só conosco, atores e equipa, foi mesmo com toda a gente e isso é muito giro.
Sabemos que Rabo de Peixe está quase a voltar, mas mesmo assim quisemos saber mais. O que é que a Maria João Bastos nos pode contar sobre projectos futuros?
— Bem, a segunda temporada de Rabo de Peixe, que me deixa muito ansiosa. Éum orgulho enorme fazer parte da segunda temporada, que vai acontecer no início do ano que vem.
— Mas, até lá, vou fazer uma coisa que eu adoro e que também me deixa muitofeliz e estou ansiosa para começar, que é a segunda temporada da Espia.
A Espia é uma série portuguesa produzida pela Ukbar Filmes, protagonizada pela Maria João Bastos e pela Daniela Ruah.
— E que é passada numa das minhas épocas favoritas, durante a Segunda Guerra Mundial. E adoro aquela personagem, a Rose. E depois tem outro fator que eu gosto muito na série, que é contar um pouco da nossa história que muita gente não sabe.
A série passa-se durante a neutralidade de Portugal na segunda grande guerra, o que permitiu que existisse movimento de espiões e nos tornássemos um palco de espionagem internacional.
— Nós contámos isso na primeira temporada. Foi dentro dos seus limites um sucesso também aqui em Portugal, numa outra proporção. Mas de tal maneira que vamos fazer a segunda temporada, vamos começar agora em Outubro. E eu estou muito contente porque eu adoro aquela personagem.
Não seria uma entrevista numa revista tão dedicada à moda sem uma passagem por este tópico. Ainda menos, quando Maria João Bastos tem os seus créditos firmados nessa indústria. E, além disso, também tem este feito digno de se gabar — foi distinguida pela Vogue Itália como uma das mulheres mais elegantes do Festival de Cinema de Veneza.
Aproveito esta tangente entre moda e cinema para também lhe perguntar o que pensa da aproximação destes universos. Suspeito que para além da caracterização, há muito outros detalhes em que se misturam.
— Eu acho que todos os universos criativos estão ligados. A pintura está ligada ao cinema, a literatura está ligada à moda, a moda está ligada à pintura. Não consigo dissociar tudo que seja a arte e processos criativos daquilo que eu vivo diariamente no meu processo de criação no meu trabalho.
Maria João parece saber do que fala, é muito mais do que uma reflexão académica para ela. É uma experiência empírica, algo que sente na pele.
— Inspiro-me num quadro, inspiro-me num livro, inspiro-me numa fotografia de moda. Por isso, a moda também me inspira, como o cinema certamente inspira a moda. Vemos muitos criadores a inspirarem-se em filmes, às vezes até antigos.O nosso Diogo Miranda fazia um trabalho incrível com isso. E o Filipe Faísca também se inspirava nas deusas de cinema.
Estes comentários são de alguém que sabe do que fala, alguém que conviveu com criadores de diferentes áreas e colaborou com eles na busca por um esforço colectivo. Mas, como é que tudo começou para Maria João Bastos? Quais foram os primeiros passos que, ao longo do seu percurso, a trouxeram até aqui?
Desde muito jovem que parecia saber o que queria, assim como o quanto era preciso melgar toda a gente para o conseguir.
— Eu comecei com 12 anos no Teatro Amador de Benavente, porque obriguei as pessoas a aceitarem-me lá. O Grupo de Teatro nem tinha crianças. Eu era mais nova e a pessoa a seguir a mim devia ter 40 anos. Mas desde pequenina que queria ser atriz, fazia teatros em casa.
— Apesar de ser um grupo de teatro armador, nós fazíamos peças de teatro todos os anos. E era um grupo bastante talentoso. Com 16 anos, fiz a minha primeira novela.Écomo os meus pais me diziam e a minha mãe ainda me diz hoje, quando meto uma coisa na cabeça, é difícil de tirar.
Mas antes da sua carreira como actriz, soube que Maria João Bastos também teve uma passagem pela moda.
— Depois de fazer uma personagem, e do meu pai ainda me levar de casa para o estúdio e do estúdio para casa, decidi vir viver para Lisboa, com 17 anos.Para estudar na universidade e para tentar a carreira de atriz profissional. Foi nessa altura que fui abordada na rua por uma pessoa da Elite que me convidou para ser modelo. Eu disse que não, que não queria.Não estava nos meus planos, era atriz e queria ser atriz, mas ela dá-me o cartão e diz-me para ligar caso mude de ideias.
— E eu só lá voltei, passado quase um ano, porque comecei a pensar naquilo e penseique me poderia dar a conhecer pessoas em Lisboa e a ter acesso a castings para televisão. Vou lá ter com a Ana Borges e digo “eu aceito, mas o meu objetivo é ser atriz”.Ela disse-me “ok, vamos trabalhar nisso”.
— Só que, entretanto, comecei a trabalhar imenso em moda. Apaixonei-me por isso. Fazia imensos editoriais e publicidades. Na moda, encontrei um espaço onde aprendi muito, onde fazia um trabalho deatriz, mas de outra forma, porque interpretava os personagens nas fotografias e nos anúncios de televisão.Comecei a tornar-me mais conhecida e a fazer a Moda Lisboa, porque nem altura tinha.Também apanhei essa altura em que mudaram um bocadinho os padrões,não é?Com a Kate Moss e tudo.
— Passados seis anos, tive acesso, através da Elite, a um casting para televisão, para uma novela, e fiquei.
É um daqueles percursos que só acontece a quem tem a estrelinha ou a quem se esforça muito. No caso da Maria João Bastos, há a grande possibilidade de que seja um pouco dos dois.
Aproveitamos para agradecer a conversa e esperar que continue a encantar as nossas páginas, assim como os nossos ecrãs, mais vezes.
fotografia Maria Rita
fashion editor Tiago Ferreira
cabelos&makeup Paulo Fonte
assistente de Styling Diogo Allien
agradecimentos especiais a Stivali