texto de Alex Couto @escritorfamoso
fotografia de Georgina Abreu
Kady é uma cantora que mistura a tradição e a modernidade, através de canções que ora nos levam até Cabo Verde, ora trazem Cabo Verde até nós. Nesta entrevista, vamos saber mais sobre o conceito de morabeza, os motivos que a levam a honrar as mulheres negras e o peso da sua família para se desafiar a fazer música.
Em primeiro lugar, o contexto desta conversa. O novo EP de Kady LUMENARA (2022), é uma viagem sónica que nos leva de Cabo Verde até ao agora — fresco e cheio de bangers que dão vontade de repetir assim que acabam. Foi ao falarmos sobre este projecto, que começámos a falar também sobre morabeza, uma forma de estar do povo cabo-verdiano que leva a abrir portas e partilhar refeições com os outros.
Porquê? Porque o EP de Kady foi feito dessa forma, de portas abertas para músicos que admira também participarem. Foi durante a pandemia, mas se não fosse a pandemia não tínhamos este disco porque provavelmente estaríamos a fazer outras coisas. Fizemos um campo criativo em que toda a gente ajudou.
O Dodje e o Dino de Santiago são grandes referências para mim e pessoas muito importantes na minha vida e esse álbum aconteceu muito por causa deles. Contei também com o Toty Samed e com o Gerson Marta. Não sabíamos o que é que ia acontecer. Fomos lá, do zero, criar as melodias e as músicas. Mas tivemos visitas de outros músicos, como da Carolina Deslandes. A família de Kady tem um longo percurso na música Cabo-verdiana. A mãe dela, Terezinha Araújo, fundou o grupo Simentera, dedicado à recuperação da tradição do país. A tia-avó, Lilly Tchiumba, participou na edição de 1969 do Festival da Canção. Pergunto-lhe se este passado é um conforto ou um desafio?Os dois. Ajuda a tentar ser melhor, a evoluir. É um desafio porque as expectativas são altas, mas acho que é mais vantajoso do que é desafiante. Quando lhe pergunto se a pressão de vir de uma família com um enorme património musical vem mais da família ou dos fãs, Kady dá a volta à resposta e relembra-me de que a pressão pode vir de outro sítio diferente. Literalmente, da minha frente, onde a Kady está.
Eu acho que principalmente por mim, sou a primeira a pôr limites. Às vezes é muito coisa da nossa cabeça, porque o público está aberto ao que tens para dar e é importante que estejas por inteiro e sejas verdadeiro no que estás a entregar. Às vezes essa limitação vem de mim. De dentro? Wow, temos de falar de saúde mental então.Eu tenho uma mente muito forte porque estudo muito sobre a saúde mental, então ganho consciência. Quando tenho muita ansiedade, já tenho consciência de que estou com ansiedade. Acho que se tivermos consciência de como estamos, procuramos ajuda e tentamos ultrapassar a condição. Eu vejo uma ligação entre esta força de que a Kady partilha comigo e a ideia de avó e mãe fortes que reconheço de outras entrevistas dela. Pergunto-lhe se a ideia de empoderamento que está presente em várias músicas do seu novo EP está relacionado com estas mulheres fortes com que cresceu.
É uma consequência, quero dar continuidade a esse legado, mas também é uma necessidade. Eu sou uma mulher negra numa sociedade europeia e eu sinto na pele o que eu estou a cantar. Quis dar a voz às pessoas que estão num lugar onde não são vistas ou ouvidas. Ainda hoje há homens e mulheres com a mesma posição numa empresa e a mulher ganha menos. E o mérito onde fica? Escrever músicas que possam ajudar mulheres negras a darem mais valor a si mesmas foi um grande objectivo meu e uma meta nestas músicas e nestas letras. A música do Nha Cabelo surgiu porque eu estava numa fila para ir fazer o teste de Covid e estava uma menina negra à minha frente com a avó que era branca. Eu tinha o cabelo molhado e ela disse à avó que o meu cabelo era tão bonito e que ia ter um cabelo assim quando crescesse. E a avó diz “o teu só se crescer para cima.”
Não pude fazer nada porque tinha Covid, mas ficou no meu inconsciente tentar falar sobre este assunto e senti necessidade de ajudar através da minha música. Quando falamos sobre educação e estudos, Kady partilha uma visão própria deste assunto e uma que será decerto partilhada por quase todos — acho que a educação vem de casa, o que não falta são pessoas com cursos superiores, mestrados e tudo, e depois não são capazes de agir com educação. Também me diz, acerca de ser mãe e com graça e razão, que não é só ensinar a proteger as mulheres, mas também os limites que os homens devem respeitar.Eu conto à Kady que cresci com cabo-verdianos e descendentes de cabo-verdianos e que considero essa partilha cultural uma grande felicidade na forma como fui criado. Tento levar a conversa para uma ideia de cabo-verde enquanto estado de espírito e a Kady brilha nas suas considerações sobre este tema.
Lá está, aquela nossa palavra morabeza significa exactamente isso — há uma forma de acolher cabo-verdiana, uma ideia de que há sempre a porta aberta para quem passa, mais um prato de arroz e mais um prato de Cachupa para oferecer. Há sempre essa vontade de receber que é muito própria do povo africano, mas o cabo-verdiano é realmente conhecido por essa morabeza.
Pergunto à Kady se houve uma intenção de tornar este EP mais contemporâneo, porque essa frescura é algo que se sente na música. Aliás, se esta era a intenção dela com o projecto, como é que conseguiu fazê-lo?
Em primeiro lugar, é preciso ter a intenção de querer fazer isso. Eu digo esta frase em todas as entrevistas, mas há uma frase da Nina Simone que diz que o artista deve reflectir o seu tempo. E se nas mensagens eu achava que já estava a reflectir o meu tempo, eu quis fazer isso também a nível musical. Quis trazer as minhas raízes e honrar a minha ancestralidade, mas trazer isso para o mundo em que estou, onde convivem com pop e hip-hop. Foi fazer uma fusão da música tradicional cabo-verdiana com um universo mais pop. Esta mistura de refências, um caldeirão cultural, leva-me a perguntar sobre esta Nova Lisboa sobre a qual Dino cantou, onde influências se podem cruzar e criar algo belo a partir daí. Sinto muito isso. Está a transformar-se nisso. Senti isso depois de ter participado no Festival da Gulbenkian que foi o Lisboa Criola, onde toda a comunidade estava junta. Isso não é algo assim tão comum, infelizmente. Achei que era um bom ponto de partida. Em mim, há a influência de muitos lugares porque estou a viver em Lisboa. Se estivesse a viver em Cabo Verde, talvez não tivesse a influência de Angola e da Guiné-Bissau com tanta força como estando a viver em Lisboa. Realmente existe essa mistura. Para acabar, relembro uma história divertida que a Kady me contou acerca da sua ida ao Colors, gravado em Berlim. Conto pelas minhas palavras, porque o meu iPhone decidiu empancar nesta parte da entrevista e tudo o que tenho é a lembrança da história contada pela Kady. Em Berlim, no Uber que chamou para ir para estúdio, teve a sorte de conhecer um condutor simpático de origem árabe, que partilhou referências de música com ela e que apontou religiosamente as dicas que a Kady lhe deu a ele. E no último dia, ao ir para o aeroporto, teve a surpresa de apanhar o mesmo senhor. Ele disse-lhe que nunca tinha apanhado duas vezes a mesma pessoa na cidade de Berlim.
Aqui em Lisboa, ficamos com a sensação de que também não vamos apanhar uma artista como a Kady mais nenhuma vez. E isso é digno de ser celebrado, através da sua presença, claro, mas sobretudo através da sua música.
texto de Alex Couto para
Fotografia de Georgina Abreu, assistida por Tiago Lopes, styling Mafalda Martins, assistida por Matilde dos Reis, makeup Filipa Vilar Afonso e Calelos Philipa Semedo
Agradecimentos a ETIC