texto de Sofia Seixo Garrucho

Gadutra, artista multi-facetada do Rio de Janeiro, chegou a Lisboa em 2017 e, desde então, tem deixado a sua impressão digital em diversas áreas criativas. Tatuagem, pintura, ilustração e música são os campos onde mais tem investido. Com apenas 26 anos, uma licenciatura em Ciências da Comunicação (FACHA-RJ) e uma pós-graduação em Ilustração (ESTAL), foi ocupando o seu espaço, seja nas paredes de galerias e bares, na pele das pessoas, ou nos palcos. Sofia Seixo Garrucho esteve à conversa com a artista para perceber melhor o seu percurso.

Gadutra, por Bruno Saavedra

Já tatuavas no Rio de Janeiro ou começaste aqui, em Lisboa?

Sim, já tatuava e produzia eventos no Rio. Comecei a tatuar um ano antes de vir para cá, em Outubro de 2015, completando seis anos de tatuagem neste mês! Mas na música já atuava desde os 15 anos de idade, como DJ no Rio.

Foi graças à tatuagem que encontraste a pós-graduação em Lisboa?  

Nunca tive uma formação em artes, mas já tatuava, então decidi entrar em Ilustração para entender como isso poderia afetar o trabalho de tatuagem. Sobre Lisboa, decidi ficar aqui depois de passar dois meses viajando por 10 países pela Europa, nos quais onde também tatuei. A ideia de voltar pro Rio desapareceu assim que consegui um estúdio, uma casa e um namorado aqui.

Quais as maiores diferenças entre a cena musical do Rio de Janeiro, doutros países europeus e a portuguesa?  

A escala, com certeza. Mesmo que a minha realidade no Rio fosse muito diferente, mais periférica, zona norte, a primeira festa que eu organizei teve duas mil pessoas. Os números lá são muito diferentes, e eu gostava de produzir eventos grandes. Quando eu saí de lá, já pensava em produzir festas para 8, 10 mil pessoas. No Rio havia festas grandes e boas. Aqui sinto falta disso. No Brasil há muita gente fazendo muita coisa, diferentes nichos, opções. Por isso, lá eu sentia mais facilidade de conectar com pessoas e isso gerava possibilidades. Aqui existe um vício mais estruturado, uma panelinha, são sempre as mesmas pessoas que ganham editais, verbas..

Quando cheguei em Lisboa, fui a 10 estúdios de tatuagem tentar uma vaga como residente, todos no mesmo dia e todos negaram até mesmo conversar sobre o assunto. Eu ainda não conhecia os códigos daqui. No Rio quase que bastava gostar de um espaço, propor alguma parceria para conseguir uma reunião e avançar com as ideias. Aqui as pessoas ficam tipo “primeiro, quem é você?” e isso parece alimentar uma satisfação egóica. Acho que há mais vontade de criar coisas lá, talvez também por um desespero de sair de uma situação precária de vida, gerando essa super abertura. Isso viabilizava meus projetos, de certa forma.

Aqui é diferente, mas também já consegui fazer eventos legais. Fiz parte da SOMA, um coletivo de coletivos. Na nossa maior festa, tivemos por volta de setecentas pessoas, no ano novo de 2020, na ADÃO. Das maiores dificuldades que tínhamos era não abrir mão de banheiros sem gênero, não ter seguranças, ou até garantir que todes pudessem ficar sem camisa, foram fatores que de cara já impossibilitavam alugar a maioria dos espaços que pretendíamos. Uma tentativa mínima de equidade já nos reduzia muito às propostas da cidade. Sempre foi uma negociação com um sistema conservador e ultrapassado. O que gerava bastante desânimo.

Gadutra, ilustração a partir de fotografia

A tua estética é muito própria, tanto na tatuagem como nas ilustrações. Com a tatuagem, qual a mensagem que pretendes passar?  

Um dos complexos quando eu cheguei na Europa foi encontrar meu estilo. Hoje entendo que isso não existe, pelo menos não da forma que eu acreditava existir. Nós não temos nosso estilo, nós somos. Quanto mais conectamos com o que queremos, mais expressivo isso tudo pode se tornar. Eu trabalhei em um estúdio em Lisboa onde ouvi “ai, você faz coisas muito diferentes umas das outras, eu nem sei quando é uma tatuagem sua ou não” e ouvir isso me deixava mal, sentia insegurança, principalmente por ainda estar criando um público aqui.

Eu quero experimentar, principalmente na tatuagem, na música, no desenho. Gosto de fazer coisas muito diferentes umas das outras, mas sabia que isso poderia criar uma dificuldade para estabelecer alguma legitimidade enquanto profissional. Toda vez que crio uma série nova de desenhos, eles não tem nada a ver com a última, e isso me motiva, me faz conhecer novos “eus”. Acredito que o nosso estilo se manifesta independentemente de padrões estéticos, e essa é a pesquisa que me interessa. Pode ter a ver com intenção. É muito mais sobre, dentro das possibilidades, tensionar o respeito pelas suas decisões.

Essa busca por uma identidade espelha-se bastante na tua obra gráfica. Por exemplo, aquelas tatuagens e ilustrações que fazes com traços e ondas pretas, esses desenhos são bastante característicos e podemos associá-los logo a ti.   

Gosto bastante desse projeto. Hoje conheço várias artistas que têm um trabalho parecido, principalmente depois que comecei a fazer. Mas quando comecei não tinha referências, foi um processo muito prazeroso de testes. Sinto que quase poderia fazer só esse tipo de trabalho, faria muito mais sentido pro mercado da arte daqui. Mas eu também adoro desenhar montanhas, flores, e até misturar todos esses, por isso, talvez seja mais em direção a uma não identidade.

Acho que hoje, poder viver da tatuagem é dos maiores privilégios que tenho. Isso me tranquiliza muito em outras criações, como pintar, produzir ou tocar como DJ. Posso me dar o luxo de fazer o que eu quero, sem precisar repensar direções, mudanças ou coligações para que “dê certo”. Gera novas descobertas.

Vou lançar um álbum esse ano, que não tem nada a ver com as músicas que eu toco em festas ou com Rezgate. É noise, meio meditativo, uso muitos ruídos, ambient. Foi um processo super introspectivo de produção confinada no ano passado. Também conta com participações de Evaya, Polivalente, Tita Maravilha e Tom Maciel.

Gadutra, pintura

Qual é o teu processo criativo para a produção musical?

Eu adoro produzir músicas, mas descobri que odeio fazer isso num computador. Nunca parei no Ableton ou Logic para produzir uma faixa inteira, acho chato, pouco intuitivo. Tenho uma groovebox que é uma drum machine, sintetizador, sequenciador e controladora, numa máquina só. Consigo produzir e tocar nela. É um processo analógico, duro, de hardware, como um instrumento mesmo. Eu gosto disso, as limitações me ajudam a organizar melhor o que criar. Também tenho um Volca Keys, um outro sintetizador.

Mas todas as músicas do álbum foram feitas em um iPad. Gosto da interatividade do tato, da mão. É quase um processo gráfico também, visual. Por exemplo, quando vejo amigas produzindo no Ableton, fico até meio confusa. Eu sei usar, mas meu processo de criação não é por barrinhas amarelas, essa inteligência de produção digital eu quase não tenho.

Provavelmente vou ter, porque também já misturei, já masterizei e pretendo continuar fazendo. Mas atualmente para a minha produção, preciso tocar. Com EVAYA, por exemplo, só me apresentava com a MC 307, essa groovebox, assim como até hoje faço com Rezgate. É tudo uma criação live, o que exige bastante concentração.. Essa máquina tem uma vibe meio club, de música eletrônica antiga, que eu amo. E a relação com ela é super complexa e extensa, é quase uma irmã.

Rezm Orah e Gadutra, que formam hoje o projecto Rezgate

Como se deu o encontro entre ti e a Rezm Orah ou, antes, como surgiu Rezgate? 

No meio do ano passado, fui tocar um set livestream para uma rádio do Brasil, e a Rezm performou no vídeo, a gente conectou de primeira. Já é uma parceria pra vida. Rezm viaja muito, por isso enquanto ela estava no Brasil, no final do ano passado, enviou uma mensagem propondo que criássemos algo nosso. Eu já gostava muito da pesquisa dela, é estranha, safada e abstrata. Obviamente topei. Ela esteve no Brasil até maio deste ano e quando chegou aqui, tínhamos menos de uma semana até nossos dois primeiros gigs, o Noise Talk e o aniversário de sete anos do Village Underground Lisboa.

Nosso projeto ainda nem tinha nome, era RezmOrah e Gadutra, nem ensaiar conseguimos. Mas fizemos esses concertos e foi tudo muito intenso, músicas que eu já tinha prontas e letras que ela também já guardava, gambiarra total. Foi confuso porém urgente, um numa quinta-feira e outro já no sábado. O primeiro foi trágico, mas deu pra entender que queríamos trabalhar juntas, que podia fazer sentido. Daí no sábado nós conseguimos uma apresentação que serviu de sinal verde. Havia muitas pessoas, muitos artistas no cartaz no evento, tínhamos acabado de sair da quarentena, em julho. O Gustavo do VUL adorou e propôs uma residência, desde então nós temos uma noite por mês de Rezgate no Village. O projeto só tem 3 meses, mas tem sido uma super prioridade pra mim.

actuação Rezgate com Gadutra

Para além da componente musical, vocês criam um espetáculo bastante rico e que toca em várias expressões artísticas. São vocês que desenham a vossa roupa? 

Usamos peças da Janis (https://www.instagram.com/janisdellarte/), amiga e companheira já muito querida. Mas nós também já fizemos algumas peças, eu tenho amado fazer as maquiagens, é sempre um mix. Janis e Rezm já trabalham juntas há bastante tempo, o que proporcionou muita familiaridade com nossas criações de cenografia e figurino. Mas eu e Rezm gostamos de fazer tudo juntas, editamos vídeos, fotos, músicas, gerimos toda a parte burocrática e executiva. É um projeto equilibrado. Desde o início, nós já sabíamos que queríamos algo grande. Precisamos de luzes, projetor, cenografia e espaço, todo um sistema estrutural para criar o ritual que performamos.

No projeto EVAYA, para além de teres co-produzido a ༼ĭ̈n̆̈t̆̈r̆̈ŏ̈༽, também atuas com ela. Tens mais alguma função neste projeto?  

Eu amo a Bea. Logo que nos conhecemos decidimos produzir música juntas. Ela propôs que eu fizesse uma faixa pro seu primeiro EP e saiu a tão querida ༼ĭ̈n̆̈t̆̈r̆̈ŏ̈༽, qual construímos também o vídeo em conjunto. Depois disso não podia faltar uma coprodução nossa para meu álbum, Gadutra e EVAYA fazem parte do mesmo universo. Também estive bem perto da criação de algumas tracks ainda não lançadas do projeto dela, principalmente por ter atuado como parte de sua banda. Foi super bonito e desafiador reeditar parte das músicas para tocá-las ao vivo com minha máquina. Evaya me inspira bastante, tenho certeza que ainda colaboraremos para o futuro.

trabalha de tatuagem de Gadutra

Uma última pergunta, desta vez mais virada para a política, ou a bio-política. Enquanto pessoa trans, não-binária, BIPOC e brasileira, qual sentes tem sido o maior obstáculo para a tua arte ter o reconhecimento que merece?

Comecei a entender os processos da desobediência de gênero e não-binariedade aqui em Portugal, há dois anos. Na quarentena isso bateu mais forte, principalmente por viver sozinha. Sinto que a nível profissional, ter uma carreira minimamente estável, “validada” por números, trouxe alguma tranquilidade. Por isso, percebo mais como isso transforma o que eu já tinha criado: as pessoas ainda não têm tato. Ainda não sabem lidar. São muitas perguntas, muita dúvida. Não só no trabalho, essas questões se estendem por toda minha vida, ainda não existe meu gênero em um documento de identidade, respeito pelos meus pronomes ou um banheiro para mim. Também não posso deixar de evidenciar o alarme para pessoas em situação de mais vulnerabilidade que eu. A transfobia ainda exclui, ridiculariza e mata.

Eu tento ao máximo minimizar todos esses desgastes. Agora trabalho em minha casa, por exemplo, em Oeiras. Mas, pensando em outras barreiras, existe uma voz (de tom colonial), a qual tento calar a todo instante, que busca por validação do meu trabalho no mercado europeu. Hoje compreendo melhor esses processos, e tento criar acreditando em caminhos que contornam essa pressão, que ataca de todos os lados. É sobre polir meus modos, o jeito que coço a cabeça ou como não me apresento formal o suficiente. Detalhes de uma inutilidade que podem facilmente te cancelar.

Durante 2 anos eu fui a única pessoa brasileira num estúdio de 10 tatuadoras aqui em Lisboa. Isso não faz sentido nenhum. Cadê as tatuadoras brasileiras nessa cidade? Diziam “ah, mas eu não gosto desse tipo de trabalho”. Você não aprendeu a gostar disso, não tem as ferramentas de cognição e sensibilidade para esse tipo de trabalho. Seu olho não está acostumado a ver essa estética. E ainda assim, não gostar não pode ser desculpa. O privilegiado europeu tem que dar espaço, tem que estar preparado para abrir mão, perder. Se você tem lugares, espaços, é sua obrigação incluir dissidências e margens, AGORA. Onde estão artistas pretas, trans, imigrantes? E porque não estão na frente? Existe um leque de pessoas muito potentes construindo trabalhos novos aqui, Luan Okun, Rod, Tita Maravilha, Jajá Rolim, Didi, Puta da Silva, EuBrite, Náara (Kahumbi), SoundPreta etc.. Procurem saber. Contratem dignamente.

Ao mesmo tempo que isso acontece, para mim, transcender tem preenchido vazios. Tenho encontrado respostas muito significativas e subjetivas. Eu acredito na força da rede que conecta pessoas estranhas. Isso pode nutrir e vai transformar. Nós estamos levantando, e vamos cobrar. A força da criatividade que me permite transmutar também me possibilita ver novos caminhos, novas direções e um novo prosperar.

texto de Sofia Seixo Garrucho para PARQ_71.pdf (parqmag.com)