Ao Piano
texto de Carlos Alberto Oliveira para
Hélio Murais, Co-Fundaador dos Linda Martini, estreia-se em nome próprio. Motivo mais do que suficiente para nos reunirmos na sala de ensaios da banda, na sua produtora Haus, para uma conversa vívida e fluida sobre a sua génese e a enorme satisfação que sente por finalmente o disco estar cá fora, mas também sobre o recurso à linguagem inclusiva e a criação de uma identidade artística própria. Ao fundo da sala, o piano, outrora de Sufjian Stevens, também foi protagonista da nossa conversa.
Uma vez que álbum que acabou por ser lançado e levou tanto tempo desde a sua fase de conceção e depois adiado por causa da pandemia, gostaria de saber qual a sensação de finalmente te poderes dedicar em pleno a este projeto.
A sensação é a de alívio. Como sofreu várias datas de adiamento, já me estava a fazer confusão. Porque a primeira data coincidiu com o primeiro confinamento em 2020. Todos os artistas que tinham planeado edições para essa altura sofreram com isso. Depois houve um segundo momento em que anunciamos para final de setembro, inicio de outubro, coincidindo com a programação das salas de espetáculos, sendo que os promotores estavam ainda a descortinar como fazer espetáculos com a limitação dos lugares, acabaram por optar por adiar. Neste cenário, não seria a melhor altura e foi novamente adiado para janeiro que coincidiu novamente com um confinamento e só apresentámos uma nova data quando sentimos que íamos realmente desconfinar e que ia ser possível ter as lojas abertas para se poder vender o disco. O que está para trás do primeiro adiamento não me angustia, porque fui fazendo as coisas com muita calma, não tinha pressão nenhuma de qualquer espécie, a não ser a preocupação da pertinência de estar a fazer um disco a solo e se aquelas musicas seriam boas ou não. Mas gerir o stress de estar na iminência de editar numa data prevista e não saber como é que as pessoas iam reagir e depois a desilusão por não haver edição, a dada altura comecei a questionar se o disco era bom ou não. Senti necessidade de me afastar dele para depois poder fazer as pazes com ele.
Entretanto foram lançados 4 singles, levantando o véu sobre o disco, e não tendo ainda sido apresentado ao vivo, tens alguma noção da reação das pessoas?
Relativamente ao primeiro single “Não sou Pablo, nada muda” senti que havia uma estranheza porque as pessoas estavam habituadas a ver-me atrás de uma bateria e apesar de nos Paus também cantar, é uma voz misturada com os outros, não havendo uma posição de destaque. As pessoas não estavam familiarizadas com o meu timbre, com a minha forma de me expressar e houve de certa forma uma estranheza. Com muitos dos artistas de que eu gosto, também houve inicialmente uma estranheza com a voz, nomeadamente com o Cedric Bixler-Zavala, o vocalista dos At the Drive. Mas eu gosto disso porque havendo uma estranheza também há um fator distintivo. Com o tempo vem a habituação à vocalização do artista. Contudo, senti que isso se foi desvanecendo com o tema “Catatua“ e com o lançamento dos restantes singles.
De facto, o single “Catatua” distingue-se dos outros por fugir à matriz mais pop e por se conseguir perceber melhor o teu timbre de voz.
Este disco possibilitou um processo de aprendizagem ao ser confrontado com a saída da zona de conforto porque não é imediato. Como baterista já tenho a minha identidade há muitos anos, tentando fugir dela a cada disco para não me repetir. Enquanto compositor estou a descobrir ainda, apesar de ter começado a compô-las há já muito tempo, nunca o fiz de uma forma muito consciente, com um objetivo muito definido nem com um prazo muito apertado. Mas tem sido um processo. Eu aprendi mais sobre mim enquanto compositor num ano, desde que começou a pandemia, do que nestes anos todos em que andei a compor este disco. Eu nunca compus preocupado com o timbre da minha voz ou tendo em atenção o meu tom, compunha simplesmente porque tinha vontade de fazê-lo. Ao piano ia encontrando estruturas melódicas e depois juntava as letras porque sempre gostei de escrever, mesmo para as minhas bandas mais antigas, sobretudo nos If Lucy Fell e nos Paus. Neste disco, nomeadamente no tema “O Outono” tive que aproximar a musica ao meu tom, enquanto que no “Não sou Pablo, nada muda” não foi composto para o meu tom. Hoje em dia quando toco essa música na guitarra canto num tom bastante abaixo, canto mais próximo do que me é mais natural, num registo mais próximo da oralidade. Quando gravei o disco não tinha essa perceção.
Como sentes a passagem da bateria para o piano?
Foi um acaso. O tour manager de Linda Martini, da altura, Nuno Geraldes, foi também tour manager de uma série de bandas como o Grizzly Bear, Au Revoir Simone e apanhou muitas bandas da cena Indie de Brooklyn como os Animal Collective. Quando Sufjan Stevens atuou em Portugal, em 2010, o Nuno Geraldes, foi convidado a um jantar com os músicos que tocavam com o artista. Depois no final do concerto disseram que o piano foi comprado só para fazer aquela tour e que aquele seria o último concerto e que o piano ou ia ficar abandonado no coliseu ou ía para o lixo ou, se quiséssemos, podíamos ficar com ele. E o piano veio parar à nossa sala de ensaios. Inicialmente era mais difícil para mim compor numa guitarra, por isso pensei que, sendo o piano um instrumento meio cordas meio percussão, talvez fosse um instrumento melódico para compor bases melódicas.
Em termos de estrutura musical consegues criar uma matriz mais próximo do que pretendes compor?
Sim, há mais coordenação motora, tocas com os dedos todos. Curiosamente na bateria também, ao contrário do que as pessoas pensam. Assumem de imediato que tocar bateria é só braços, mas exige técnica de dedos para fazer os movimentos. Contudo o piano necessita de uma maior independência, sendo necessário tempo para o conseguir. Mas eu também nunca me interessei em ser excelente num instrumento específico. Prefiro ser razoável em vários e com isso divertir-me mais.
Dirias que o piano é mais melancólico?
Diria que sim. Com o piano tens a capacidade de encher mais as músicas. Talvez tenha sido por isso que eu tenha começado pelo piano, embora para algumas das músicas tenha passado da guitarra para o piano, como “Não sou Pablo, nada muda”. Senti que na guitarra soava a pouco encorpada e depois quando transpus para o piano já tinha mais consistência. Comparativamente, com o piano, consigo tirar mais sons em simultâneo do que na guitarra, permitindo aceder de imediato aos graves e aos agudos. Evidentemente que um bom guitarrista também faz isto muito bem, mas o piano é um instrumento bastante completo. Um bom pianista e que cante bem consegue encher uma sala.
Igualmente melancólico, e recorrendo à eletrónica, o tema “Oi Velho” encontra aí o seu expoente máximo.
Essa é uma música instrumental que foi feita em casa. Eu tinha escrito uma coisa menos prosaica sobre o meu pai. Anos após o falecimento do meu pai voltei ao Hospital onde morrera de cancro em 2012. Foi de tal forma fulminante que nem soubemos que tipo de cancro se tratava. Em 2019 voltei ao hospital para obter a informação porque na altura foi muito difícil falar com os médicos, por estarem sobre-lotados com reuniões de propaganda médica. Considero uma atrocidade estarem a ocupá-los de sobremaneira, retirando-lhes tempo com as famílias, não só para os informar sobre do que os pacientes estão a morrer aos seus familiares, como também apoiá-los no momento doloroso. Eu nem tive oportunidade de dizer ao meu pai do que é que ele estava a morre. Foi estranho voltar ao mesmo sítio, ver as mesmas camas, sentir o mesmo cheiro e perceber que a única coisa que mudou foram as caras das pessoas. Escrevi sobre esta experiência e mostrei ao Benke Ferraz. Ele por sua vez, mostrou-me o áudio que tinha no telemóvel e eu reparei que tinha a expressão “Oi Velho” e pensei em aproveitar o que tinha escrito e adaptar àquela música triste. A música resultou num formato exclusivamente eletrotónico porque o Benke a tinha produzido no computador. Mas há muitas outras. O “Até de manhã” tinha uma bateria, mas colocou muito Beats, muito 80. As baterias foram gravadas organicamente e depois saturadas. Brincou-se muito com o som, pondo reverses e delays, o que acabou por criar uma matriz electrónica bastante forte em quase todas as músicas.
Umas mais do que outras, mas naturalmente, o tema “Oi Velho” é dos mais vincados. O tema “Bemvindx” foi feito para servir de passagem para o “Até de manhã”, que ligava os elementos eletrónicos para depois passar para o “Oi Velho”. Mas eu tinha interesse nisso porque tinha ouvido MIX$TAKE do Giovani Cidreira, que o Benke produziu, que era totalmente eletrónico.
Pode-se afirmar que essa via foi também para te demarcares dos paus e dos Linda Martini. Quem ouve o disco se não te conhecer não associa.
Isso era uma das minhas grandes premissas. A partir do momento em que eu decidi gravar o disco, a grande decisão foi a escolha do produtor. Como não queria que soasse remotamente com as minhas bandas, escolhi o Benke. E a bateria foi um dos maiores desafios. Foi das ultimas coisas a definir porque eu não queria que soasse demasiado rock nem demasiado rítmica como nos Paus. O Benke parece que pintou as ondas e ao mesmo tempo parecia manipulá-las com as mãos, esborratando tudo de seguida. E com isso fez com que eu encontrasse um espaço que é meu. Eu sei que isso pode causar maior estranheza, mas ir para as proximidades das minhas bandas não era o pretendido, antes pelo contrario. Queria fazer uma coisa nova. Não tinha interesse em fazer uma coisa nova para soar a velho. Para isso não fazia outro projeto.
O disco contém a curiosidade de as musicas “Bemvindx” e “Acordadx” se escreverem com um X em vez de assumir gramaticalmente o género da palavra. Isso revela uma preocupação com a questão da língua portuguesa não ser tão inclusiva como é o caso de outras línguas?
Sim porque na língua inglesa, por exemplo, não tens tanto essa distinção entre o feminino e o masculino. Defendo um mundo não binário e vincá-lo-ei sempre que possível nas coisas que faço. Faço-o no meu dia a dia quando escrevo publicamente e também achei que deveria fazê-lo no disco. O “Bemvindx”, na verdade como boas vindas deveria ter um hífen, mas não tem porque aquele é o nome próprio da canção. Sendo um nome próprio, não tem um hífen. Na verdade, teria escrito um “e” por ser mais inclusivo. Mas ainda há muita gente que me segue nas redes que não está familiarizado com a linguagem inclusiva. Isto faz com que se eu puser um “e” as pessoas interpretem mais com um erro ortográfico do que outra coisa. Quando coloco um “x” as pessoas questionam. E ao questionarem dão-me a oportunidade de explicar porquê. Como não quis definir o género do “Bemvindx” e “Acordadx” porque a personagem dessas musicas não tinha género definido. E assim penso que qualquer pessoa pode relacionar-se com elas.
A linguagem inclusiva é uma ótima mensagem, sobretudo se as pessoas questionarem.
Considero que é importante. Há pessoas que me dizem que é um disparate usar, que as pessoas ficam ofendidas com qualquer coisa. Mas eu não concordo. Porque as pessoas que se sentem excluídas têm o direito de se sentir ofendidas e se eu estou consciente de que se usar um “e” ou um “x” vou estar a incluir mais pessoas porque é que não hei de fazê-lo? É só uma questão de me colocar no lugar dos outros.
E passa-se uma mensagem mais profunda, menos egocêntrica.
Eu só um homem Cis não tenho qualquer problema de identificação com o masculino. Eu sinto-me completamente encaixado na linguagem binária porque o sou. Mas há muita gente que não o é e tem todo o direito a não ser excluída. Contudo penso que tem que haver uma razoabilidade, não fazendo parte de uma comunidade não binária, é importante não roubar voz a quem de direito. E depois há pessoas que se esquecem um bocadinho disso.
Num certo sentido, bandas como o Fado Bicha já se depararam com uma situação semelhante. A banda ao homenagear Elza Soares com “Mulher do fim do mundo” nos seus concertos, adaptaram a letra por serem confrontados com a questão de estar a tirar a voz a quem de direito.
Um dos problemas que nós temos neste momento são as trincheiras. Porque é verdade quando tu assistes a um ato de violência fica difícil olhar para o lado, mas também ficas muito revoltado quando vês alguém ser sujeito a violência, uma pessoa revolta-se e critica de uma forma dura, mas é preciso atender o outro lado. Aqui há tempos, no meio académico, ouvi especialista sobre a forma como os académicos, tendencialmente brancos, acabam por levar avante a narrativa sobre as pessoas vitimas de racismo. Continuamos a contar a história do mundo sob o ponto de vista do homem branco privilegiado. Os grandes pensadores sobre as questões raciais continuam a ser as pessoas brancas e que não dão espaço às pessoas racializadas para serem atores e atrizes nesta discussão e produção de ciência. Percebo a exigência do lado de quem sente que alguém está a roubar o lugar de fala. No caso do Fado Bicha fizeram-no com o melhor das intenções, mas foram chamados à atenção e depois retrataram de uma forma diferente. O dialogo é que é interessante. Falar e criticar não é necessariamente negativo. Temos todos a aprender, evoluir e a tornarmo-nos melhores quanto mais discutirmos os assuntos sem clubismos, colocarmo-nos humildemente no lugar do outro e a ouvir a outra pessoa para perceber a razão dos seus sentimentos. O objetivo do questionamento é tornarmo-nos num mundo mais inclusivo e respeitoso para toda a gente.
Provavelmente é um reflexo de estarmos muito focados nas redes sociais, que piorou com a pandemia, tendo o virtual ganhado uma dimensão demasiado importante na vida das pessoas. Sobretudo por as pessoas terem a liberdade para expor o que pensam assumindo que têm a liberdade para inclusive ofender. Num certo sentido, a pandemia veio fechar mais as pessoas.
Eu concordo contigo. Veio extremar as imposições das pessoas. O que é um contrassenso, porque se as pessoas comunicarem presencialmente dão-se mais, cria-se mais espaço para o diálogo e a troca de ideias diferentes, o que nos permite evoluir enquanto pessoas.
Voltando ao disco. Finalmente vais começar a apresenta-lo em concertos ao vivo. Acredito que estejas com uma enorme vontade e irás fazê-lo com apenas alguns músicos convidados. Poder-se-ão esperar concertos mais intimistas?
A pandemia veio impor normas de segurança que obrigou a reformular as atuações ao vivo. Houve sobretudo a necessidade de pensar cada espetáculo de acordo com os músicos, sendo que nem todos participarão nas datas todas. Basicamente tenho o Miguel Ferrador, que toca teclados e dispara samples, mais os baixos, o João Cabrita a tocar saxofone, o João Vairinhos na bateria e pontualmente o cantor Pais e a Catarina Munhá.