Pensar a Horta, tal como o mundo, de forma mais sustentável
A partir da horta da sua casa, em Torres Novas, Denis Hickel pensa o mundo. Há 16 anos radicado em Portugal, o arquitecto brasileiro procura repensar os grandes desafios mundiais a partir das suas práticas hortícolas, pensando em esquemas para uma maior sustentabilidade do nosso planeta. O novo rural, como se intitula, passou a ser o arquitecto que pode desenhar o mundo a partir de uma gota de água. Espera que muitas gostas se juntem façam uma corrente para encher rios e mares, ao qual todos somos chamados para que alguma coisa mude. Tomamos o percurso de Denis Hickel como um exemplo a seguir. Preparados?
Tem uma formação e obra na área da arquitetura, quando começou o seu interesse pela agricultura?
O meu interesse pela agricultura, começou de forma gradual, quando ainda vivia em Lisboa, onde tinha um atelier de arquitetura na Vila Sousa, um espaço partilhado, onde existia um grupo de estudo dedicado aos desafios da sustentabilidade em meio urbano. Um dos temas desenvolvidos que me despertaram mais interesse foram as hortas urbanas. Comecei depois a ganhar um maior suporte teórico, porque o meu doutoramento na área do design levou-me a entrar em contacto com a Permacultura e outras filosofias ligadas à ecologia e produção alimentar alternativa. Isso tudo era complementado com um passado no campo junto dos meus avós no Brasil, Tudo começou a ganhar forma quando saímos de Lisboa e fomos viver para Torres Novas, onde adquiri um terreno que tinha como objetivo inicial fazer uma horta para a família. A partir daí fomo-nos ligando cada vez mais à terra.
Mas quando chegaram a Torres Novas, a ideia era colocar o projeto de arquitetura em stand by?
Não, a arquitetura foi acontecendo a partir de Torres Novas, não porque mantivesse um atelier, mas porque os clientes antigos ou alguns novos, locais foram-me pedindo projetos. Mas, paralelamente, estava a investir mais no tema agrícola e decidimos fazer um programa jovem agricultor, voltado para as abelhas. Neste processo de estar na terra passamos a desenvolver hortícolas para fora. Primeiro, para o mercado de Torres Novas, depois introduzimos um programa de cabazes semanais, que é o que temos até hoje.
E o que representa para si ser jovem agricultor em Portugal?
Há muitas dimensões para a designação jovem agricultor. Uma está ligada àqueles que procuram fundos europeus para instalar um projeto na área. Em geral são pessoas que já tinham propriedades ou negócios de famílias. Em dez anos de atividade no meio agrícola conheci muito poucos que, como nós, estivessem a começar do zero. Por isso, nós, mais que jovens agricultores, somos na verdade novos rurais, pessoas urbanas com um projeto no universo rural.
E vocês, os novos rurais, estando ou não ligados à agricultura, têm alguma rede ou ideia de comunidade que os mantenha ligados?
Não existe. O nosso elo de relação estabelece-se a partir da nossa proposta de agricultura, É um projeto bastante conhecido nacionalmente no contexto da agricultura biológica, permacultura, etc. por causa do nosso trabalho para desenvolver a agricultura de proximidade. Nós criamos uma rede de colaboração com outros pequenos produtores certificados que nos garantem os produtos que não temos aqui para garantir a quantidade e diversidade. Por exemplo, nós produzimos hortícolas mas vamos buscar a fruta a um produtor do oeste que pertence à nossa rede. O produto sai da nossa horta, ou de um raio pequeno de ação, diretamente para o consumidor, sem intermediários. Antes da pandemia que nos afeta hoje, também costumávamos promover cursos e dias abertos aqui na quinta o que nos aproximava ainda mais da nossa comunidade, não só dos consumidores, mas também dos que vinham para ver o que fazíamos aqui.
Nestes dez anos de desenvolvimento de projeto, quais foram as fases essenciais para que pudesse acontecer?
Sem dúvida, as novas oportunidades de conhecimento que despertaram no processo do meu doutoramento. As redes de contato estabelecidas com todo um universo de pessoas ligadas ao questionamento do status quo, ao universo da agroecologia, a aprendizagem com outros agricultores e uma conexão com um pouco de tudo que vai acontecendo pelo mundo nesta área dos circuitos alimentares alternativos.
Essa formação na área do design não tinha a ver com a agricultura?
Não. Na verdade era uma formação que tinha mais a ver com os processos criativos do design, aquilo que se chama o design co-criativo. Ou seja, onde o design é um processo criativo envolvendo outras pessoas vindas de outros contextos de conhecimento. No meu caso, procurei aplicar esses princípios no contexto escolar, razão porque vim parar em Torres Novas. O conhecimento adquirido durante a tese acabaram por me influenciar na forma como via o mundo em termos económicos, culturais, ecológicos e de sustentabilidade. A produção alimentar, acabou por ser a minha forma de criar um projeto com impacto, que não fosse só económico mas que tivesse relevância local e cultural na região. Mas o designer está sempre presente.
Foi fácil de implantar um projeto com viabilidade económica em que o sustento da família estivesse assegurado?
Foi um processo na verdade muito acidentado. Nós não sabíamos nada de agricultura, fomos fazendo sem grande planeamento. Descobrimos mais tarde a importância do planeamento. Por isso cometemos muitos erros no caminho. A curva de aprendizagem nesta área acaba por ser longa . Tivemos que passar de sujeitos urbanos que cultivam os seus próprios alimentos, a uma escala com dimensão mais comercial. Aprendemos com a prática. Somos autodidatas.
E como foi inserir-se no meio rural onde se estabeleceram? Houve muitas trocas de informação?
Até ao momento a nossa relação é só de vizinhança. Na realidade estas comunidades rurais, onde nos estabelecemos estão em geral muito envelhecidas. Depois de 16 anos em Portugal e 10 anos vivendo aqui no concelho de Torres Novas, descobrimos o abismo que existe entre o mundo de Lisboa e o mundo rural. As pessoas aqui são culturalmente muito mais fechadas e apesar das boas relações de vizinhança, não revelam grande abertura para os debates globais que vivemos hoje em dia. É como se estivessem completamente alheios, tanto os agricultores como os restantes habitantes desta comunidade. Para eles os problemas são outros, mais quotidianos, como a falta de serviços públicos básicos, o apoio ao mais velhos. O global é visto como algo distante e de responsabilidade dos outros, dos políticos, decisores ou especialistas.
Não tiveram práticas agrícolas para trocar? Experiências?
Trocamos muito com outras pessoas na mesma situação, espalhadas pelo país, mas não à nível de vizinhança. Eu procuro abrir um leque de comunicação com o agricultor convencional, mas é uma tarefa exigente. Eu eduquei-me na agricultura já a pensar em todo um universo ecológico que para mim faz todo o sentido, mas compreendo que para os meus vizinhos, descendentes de várias gerações de agricultores convencionais, a visão do mundo deles seja diferente. Eu não posso simplesmente dizer-lhes que uma forma de agricultura está errada e outra está certa. Há todo um contexto cultural por detrás que é difícil de mudar. São sistemas e formas de produzir que trazem uma certa estabilidade para estas famílias e é muito difícil para alguém (ou comunidade) que tem algo estável transitar para algo que não conhece. Sair da agricultura convencional para a ecológica é, muitas vezes, um passo rumo ao incerto para o agricultor. Na minha perceção, devemos criar formas demonstrativas de viabilidade económica e ecológica. Não adianta apenas impor políticas, porque o importante é criar modelos e contextos culturais apropriados para fomentar mudanças. A agricultura convencional ela é um modelo. Ela é um pacote tecnológico que foi desenvolvido após a Segunda Guerra Mundial e que foi globalmente adotado. Esse pacote ainda é ensinado nas escolas agrícolas. Por isso tudo é uma transformação que demora décadas para acontecer e já vamos muito atrasados portanto. Hoje a agricultura biológica representa apenas cerca 7% da produção Europeia. Em temos nacionais, apesar de todo o crescimento também somos apenas 7% e destes apenas cerca de 3,0% é produção alimentar. O resto é pasto. Ou seja, a agricultura biológica ainda é algo residual.
E como é que a agrofloresta chega aos seus projetos?
Por necessidade. Percebemos que tínhamos um espaço físico que precisava de ser regenerado. A horticultura demanda uma grande energia em termos de “input” e questões relativas à fertilização, energia e água estão sempre a ser equacionadas em termos de uma maior autossuficiência. Este foi um motor, o outro, foi por questões práticas. Dada a impossibilidade de plantar sob um sol intenso e a vontade de agregar diversidade, naturalmente foram surgindo árvores, que me levaram a uma natural pesquisa de informação até chegar à Agrofloresta que é uma área de conhecimento enorme. Eu entendo que agroflorestas são sistemas produtivos que buscam replicar ciclos e disposições naturais, no tempo e no espaço, em arranjos produtivos integrados, com árvores, arbustos, culturas agrícolas e/ou atividades pastoris; promovendo diversidade biológica, resiliência ecológica e melhores proveitos económicos e sociais. Tem um potencial enorme de diversificação na atividade agrícola e de regenerar ecossistemas degradados ao mesmo tempo. É uma resposta muito interessante para os desafios contemporâneos da agricultura.
Para pessoas que ouviram falar da permacultura, o que é que a agrofloresta trás de novo?
Eventualmente pode não ser uma novidade de todo. Mas há sempre evoluções científicas que são novidades. De qualquer forma, tanto a Permacultura, como a agrofloresta, agricultura biológica, entre outras são parte de um contexto agroecológico que tem em comum a tentativa de entender as dinâmicas dos ecossistemas e viver de acordo. Neste caso não dá para ficar atrelado a este ou aquele conceitos para não criarmos dogmas, ou nichos. Há sempre novos descobrimentos e evoluções científicas e técnicas para agregar para ser o mais abrangente o possível.
Qual o seu projeto de futuro dentro daquilo que já tem?
Nós começamos por um outro universo, o Farm to Fork, ou seja, uma horta virada para mercado local. Hoje entendo a necessidade urgente de também desenvolver modelos altamente ecológicos para agricultura de maior escala. Àquela que vai produzir para os grandes mercados, ou mesmo para a indústria. Por isso, estamos a nos associar à outras pessoas e produtores com capacidade e vontade de inovar neste contexto. Esperamos em breve alçar novos voos.
E quais são os tipos de árvore que está a introduzir?
No meu caso há muita experimentação. Como faço consultoria de desenho de sistemas, a Quinta do Alecrim tornou-se num laboratório para o estudo de uma produção alternativa. A agrofloresta dá para tudo. Nós, por exemplo, estamos a experimentar a introdução de eucaliptos. É uma forma de provocação. O eucalipto é uma árvore que é muito forte na economia e que muito dificilmente vai desaparecer da cultura e da paisagem portuguesa. Sendo assim, o que está errado não é a árvore em si mas o uso da árvore, a forma como ela é integrada nos nossos ecossistemas através da monocultura. Eu tenho uma zona onde o eucalipto é plantado em consórcio com outras árvores como o sabugueiro, carvalhos e árvores de fruto diversas. Aqui o eucalipto ocupa uma função na sucessão ecológica. É a árvore pioneira, que cresce mais rápido, que através de podas constantes vai produzir muita biomassa para o sistema. Também tem a função de ser uma primeira fonte de renda para o produtor. Mas há um momento em que ela sai do sistema para dar o espaço para árvores de fruta e carvalhos (ou outras autóctones) em crescimento, num processo de sucessão. As árvores florestais autóctones podem levar décadas para terem um porte razoável e proveito económico. Mas têm um valor ecológico inegável. Hoje há um fosso muito grande entre ecologia e economia e que precisamos preencher de forma criativa, fora da caixa. Deveríamos misturar floresta, agricultura e criação animal na forma das agroflorestas. Na verdade, devíamos nos ver como parte ativa nos ecossistemas e geri-los. Temos que criar economias florestais que façam sentido ecológico e económico ao mesmo tempo. Há muitos bons exemplo a surgir pelo mundo.
Em que consistem os seus projetos de consultoria e qual a dimensão que tem dentro no conjunto das suas atividades?
Geralmente quem me procura são os novos rurais e um tipo alternativo de novos agricultores. Diria que são pessoas com alguma capacidade de investimento e que pensam na questão ecológica, como algo de futuro. Olham para isso como uma forma de investimento. Querem regenerar ou melhorar o desempenho ecológicos nas suas atividades. Já acompanhei uma agroindustrial que procurou implementar uma área experimental para estudar a sua viabilidade. Há exemplos também no setor do Azeite, ou do vinho que buscam responder às demandas crescentes por soluções ecológicas. Também há pessoas de outras áreas de negócio como a hotelaria e a restauração, que querem cultivar os seus próprios alimentos. Na verdade, há um grande número de atores económicos que sem muito alarde estão a investir nisso. Por exemplo, o Esporão possui centenas de hectares de terra no Alentejo e toda a sua produção é de certificação biológica. Há um tipo de investidores que estão prontos para subir para um outro patamar de modelos de produção, sem olhar apenas para o biológico, mas a tentar buscar uma sustentabilidade mais ampla e mesmo regenerar ecossistemas degradados. Um dos nossos desafios é trabalhar com estas pessoas. A escala é muito importante do ponto de vista da economia que temos hoje.
Estamos habituados que estes projetos sejam em geral em microescala, destinado a um público mais restrito que valorize o produto e não se importe de pagar um pouco mais caro, por isso. Mas como passar para uma escala maior?
Há vários itens que complicam esta equação. Em geral temos um agricultor numa das extremidades da cadeia alimentar, muito maltratado. É pressionado a produzir com mais eficiência a aumentar a escala produtiva e manter-se à par com a evolução tecnológica. Ao mesmo tempo, a expectativa do consumidor é pagar pouco pelo produto final. Contudo, se adicionarmos as questões ecológicas à equação da produção alimentar, este não pode ser sempre barato. O custo real da produção alimentar é mascarado pela questão da escala, pelos subsídios e pelo facto de os fatores ecológicos não entrarem na conta da produção alimentar. Depois, entra ainda a extensão da cadeia alimentar que tem muitos intervenientes, muitas pessoas a intermediar até chegar ao consumidor final. Isso vai sempre reduzindo o valor no ponto inicial da cadeia (o agricultor), e quem fatura é o industrial e as grandes superfícies. Assim, é preciso mudar toda a cadeia alimentar para alterar o paradigma da agricultura. Não vale a pena estarmos a discutir esta oposição entre biólogo sem discutir toda a cadeia alimentar. Não mudaremos a agricultura, sem mudar o paradigma económico, ou sem falar em outras formas distribuição de renda e organização económica e cultural.
O que é preciso para mudar a cadeia alimentar?
Primeiro é preciso esclarecer o consumidor. Este têm que compreender que é parte nesse processo de transformação, mudando hábitos alimentares e de consumo e exigindo tomadas de posição política por parte de governantes e decisores. Já há quem procure apoiar projetos como o nosso, de agricultura de proximidade. Ganhamos ambos com essa aproximação. Eu consigo fazer preços de produtor para o consumidor final. Se falarmos em termos de produção biológica, a pessoa que compra na minha quinta adquire um alimento de maior qualidade e menor impacto ambiental por um preço menor quando comparado com o que está disponível no supermercado. Thá também que haver algumas alterações nos outros atores das cadeias alimentares que são os industriais e as grandes superfícies. Os industriais teriam que começar a desenvolver produtos com base em formas de agricultura alternativas e trabalharem junto com os agricultores outros processos e formas de viabilização desses produtos. Da parte dos supermercados era também importante mudar a sua cadeia de abastecimento, em vez de dependerem de cadeias longas, passarem por optar por cadeias mais curtas. O que vemos no supermercado são produtos das mais diversas partes do mundo e muito industrializados. Obviamente que tratam-se de mudanças estruturais e só contando com a pressão do consumidor é que poderia haver uma mudança maior. Mas em Portugal temos um consumidor pouco esclarecido, com pouca prioridade na saúde e na ecologia e com baixo poder aquisitivo que ainda precisa reconhecer que o impacto negativo da agricultura tem no meio ambiente não é só um problema do agricultor, é um problema da sociedade como um todo. E que não atacar este problema agora colocará em risco sério o nosso bem estar à curto prazo.
Que acha das políticas portuguesas relativas a estas questões agrícolas e do meio ambiente?
Há boa intenção, mas pouco entendimento da complexidade e da necessidade de mudanças estruturais. Há sempre uma tentativa de manter o status quo. As diretivas ao nível europeu vão no sentido certo, com estratégias tipo Farm to Fork. Mas a nível nacional são deturpadas e apenas fazem o famoso greenwashing. Apesar de existirem programas específicos, não existem estruturas de apoio local para realmente criar cadeias curtas de comercialização, de capacitação de produtores, para conectar diferentes agentes, de sensibilização radical dos consumidores. Também não há uma cultura de monitorização criteriosa dos resultados – não apenas indicadores económicos – mas também socais, ecológicos, práticos, etc. Para assim podermos elaborar estratégias mais holisticas.
Grosso modo, as políticas são apenas pontuais, vêm de cima para baixo, não abordam as questões mais complexas e os fundos não chegam na base da pirâmide. Há também uma falta de entendimento do papel do poder público local, do seu papel de legislador para facilitar processos. Afinal, a forma como se organizam as cidades, um plano urbanístico, também interferem na vida cultural das cidades a na forma como as pessoas se relacionam com este ou aquele tipo de comércio.
Há ainda o aspecto da educação do cidadão, do agricultor, do empresário. Da criação de uma noção coletiva de que mesmo numa economia competitiva e livre estaremos sempre atrelados às dinâmicas dos ecossistemas e às nossas comunidades onde vivemos. Assim, há sempre necessidade de alguma forma de intermediação. Se deixarmos as coisas correrem simplesmente, há grande chance de a questão ecológica vir de cima para baixo e de forma impositiva. Se prezamos a nossa liberdade, deveríamos ser nós enquanto cidadãos os primeiros a reconhecer a necessidade de se envolver na mudança e na criação de novos processos. Eu acredito que a ecologia na economia não é restritiva, mas sim uma possibilidade para inovar e estabelecer outras formas de desenvolvimento e bem estar. Mas é preciso pensar fora da caixa.
texto por Francisco Vaz Fernandes para a revista PARQ 68 Dezembro de 2020