Eternamente jovem
Maria Gambina é uma veterana no cenário de moda nacional. Aliando o caráter utilitário da streetwear à visão irreverente de quem se rege pelas suas próprias regras, a designer transforma a passerelle num palco que cruza as infindas referências que constituem o seu trabalho. Do ensino ao design, é a sua vasta experiência que reveste a marca com uma identidade muito própria. Apesar dos anos se terem passado, as suas coleções continuam a ser expressivas e vibrantes, como se fossem marcadas por uma eterna juventude. É essa mesma experiência que guia esta entrevista, numa viagem do passado ao presente da carreira de uma artista que continua a redefinir a moda em Portugal.
A sua última coleção foi acompanhada de mensagens políticas. Considera que a moda deve assumir um papel de intervenção social?
De certa forma, as mensagens políticas só foram reveladas após o desfile, no Instagram da marca. Nada foi óbvio e, de todo, procuravam a provocação. No entanto, todas elas transmitiam uma inquietude contemporânea que eu sinto e que me provoca tristeza, impotência e sufoco. Se a moda deve assumir um papel de intervenção social, o “deve” é algo que me assusta. Penso que o veículo para qualquer chamada de atenção deve ser genuíno e nunca para a ficar bem na fotografia. No entanto, na história da moda, são vários os casos em que as peças de vestuário tiveram esse papel de intervenção social. Lembro-me, por exemplo, da Zuzu Angel ter bordado nos seus vestidos mensagens de protesto contra a ditadura militar, vivida na época no Brasil, e chamar à atenção do mundo para o desaparecimento do seu filho militante que acabou por ser assassinado pelo governo.
Qual foi a principal mensagem que tentou transmitir através da coleção?
Nesta coleção, imaginei ser a nova diretora criativa da marca. Fiz uma pesquisa de todas as minhas coleções a fim de identificar o DNA da marca. Penso que a mensagem foi mesmo essa, a solidificação de todos os elementos que caracterizam e identificam a Maria Gambina. A forma como sempre trabalhei os denims, pouco convencional e por vezes quase como alta-costura, a reinterpretação dos eternos clássicos como o Bomber jacket, o Trucker, o Duffle coat e o Trench coat, os tricots gráficos em ambientes old school, o jogo de falsas peças em layers imprevistos, o lado feminino de Princesas Urbanas e, claro, os estampados.
Percebi que sempre os trabalhei com palavras ou brincava com o nome da marca associando a outras marcas. Agora parece comum, mas em 1993 não era. Ou retirava frases de canções que gostava sem identificar as músicas, ou estampava a NIVEA e CRUNCH em Árabe só porque tinha ido à Tunísia e fiquei apaixonada pelo grafismo. Na minha coleção de Verão ’19, por exemplo, estampei sinais de trânsito associados à letra da música Stop In The Name Of Love, das Supremes, mas não foi pela canção, foi uma chamada de atenção à legalização do uso de armas nos Estados Unidos. De repente, parece que se começa a viver uma nova ditadura e a sobreposição do sinal proibido significava isso. É proibido proibir. De certa forma, descobri que havia sempre uma vontade com que o público se sentisse curioso com o que estava por trás, uma vontade de partilha. Nesta coleção aconteceu isso mesmo, a vontade de partilhar assuntos da atualidade que me incomodam e, mais uma vez, apresentados de uma forma gráfica, pouco evidentes e que despertam curiosidade.
A sua apresentação mais recente, no Portugal Fashion, realizou-se sem público. Com o atual debate relativamente ao futuro dos desfiles de moda, qual é, para si, o papel dos desfiles no futuro?
Aí está uma questão que não sei responder. Penso que a forma como cada marca vai optar por comunicar deve-se direcionar, cada vez mais, para o seu tipo de público e acima de tudo para a tal mensagem, como marca, que quer passar.
Ao longo dos anos, foi-se desenvolvendo uma banalização. O público deixou de ir para ver e comprar, passou a ir para ser visto, mostrar que foi e está mais importado com os likes que vai ter do que o seu próprio like no que viu. Para mim, o formato de desfile à grande escala está ultrapassado.
Tendo iniciado a sua trajetória no curso de Pintura, de que forma é que o design de moda surgiu no seu caminho?
Iniciei o curso de Pintura e o de Design de Moda exatamente ao mesmo tempo. Após terminar o 12ª ano, concorri para o Curso de Design de Moda do CITEX, porque não tinha a certeza se entraria em Pintura nas Belas Artes. Nesse ano, não entrei em nenhum dos dois. Aproveitei para ter aulas de desenho, na Faculdade de Arquitectura do Porto, e no ano seguinte entrei em ambos. Durante um ano, frequentei o CITEX de dia e as Belas Artes à noite, o que foi extremamente exaustivo, pois o CITEX era muito exigente. Talvez tenha sido essa exigência, o sentir que estava em constante aprendizagem, aliado ao facto de ter vencido logo um concurso no meu primeiro ano do CITEX, o concurso Coup de Lune, assim como ser um curso mais curto, que acabou por me influenciar a desistir das Belas Artes.
Apercebeu-se, desde cedo, que era nas áreas criativas que se sentia confortável ou foi um processo demorado?
Quando andava na primária, em Oliveira de Azeméis, os meus pais foram chamados à escola para lhes transmitirem que eu devia ser acompanhada, individualmente, com aulas de desenho. Disseram-lhes que não era muito comum a forma detalhada como eu representava os meus desenhos. Representava aquilo que os outros não viam ou não davam importância e sempre com muito pormenor e bastante harmonia cromática. Como eu não ligava nada a isso, os meus pais acabaram por não seguir esse conselho e eu sonhava ser professora de ginástica e entrar em competições de ginástica artística. E assim foi, no 10ª ano fui para a área de desporto. A meio do ano comecei a perceber que não gostava de biologia e que de ginástica artística não havia nada. Falei com os meus pais, que me deixaram desistir, e talvez porque a conversa da primária não lhes estivesse esquecida, não se opuseram quando optei por artes. No entanto, pensando agora melhor, penso que ginástica artística também tinha muito de criativo.
Desde a música até ao futebol, são diversas as referências presentes no seu trabalho. Como é que esta pluralidade de influências se enraizou nas suas peças?
A Maria Gambina é um prolongamento de mim, de tudo o que sou e gosto. O que me estimula e me desperta está refletido em cada peça. A música sempre foi uma paixão e o desporto era a área que queria seguir. Da música tiro silhuetas, cores, movimento. Do desporto retiro detalhes, grafismos e materiais. Nem sempre é assim, já fiz uma coleção inspirada na minha cadela e até hoje é a minha preferida, mas confesso que em todas elas tenho que ter uma banda sonora na minha cabeça e não me consigo dissociar de ambientes de ginásios, campos de jogos, piscinas ou corridas.
As suas primeiras coleções são inspiradas no universo da rua e no streetwear. Como é que foi recebida no cenário de moda em Portugal, com ideais mais clássicos?
Antes pelo contrário. Quando apareci, o universo de rua e o streetwear nem surgiam como palavras na história da moda. No início dos anos 90, a moda era dark, tudo muito escuro, um alternativo romântico, mas melancólico e provocador. Claro que estou a falar de Portugal e dos sítios que eu frequentava, como o Frágil em Lisboa e o Aniki Bobó e o Lá-lá-lá no Porto. Com a minha coleção de final de curso venci o 1º concurso do Sangue Novo da ModaLisboa. Era inspirada no meu pai que foi piloto da Força Aérea, coletes com mochilas incorporadas presas por pressintas laranja, forros estampados em nylon laranja, peças que se transformavam, fechos metálicos que assumiam um papel gráfico fundamental nas peças, materiais com acabamentos técnicos pouco usuais em peças de vestuário. Uma atitude muito descontraída, prática e divertida. Na segunda edição do concurso Sangue Novo tornei a vencer, com blusões acolchoados tricotados à mão em grossas lás Poveiras. Assumi o corte e cose do lado exterior das peças, construí riscas em linha torçal (normalmente usada só nos denims) pespontadas sobre fazenda, utilizei nos interiores das peças grafismos que nos remetiam às barras gráficas dos equipamentos de desporto. Lembro-me que o meu trabalho se destacava pela diferença, por trazer elementos da rua e do desporto que não eram comuns se verem em peças de vestuário do uso diário. Pôr os manequins todos de sapatilhas não era uma coisa normal, usar cores garridas não era uma coisa normal, trabalhar materiais técnicos não era uma coisa normal, utilizar estampados não era uma coisa normal, fazer t-shirts não era uma coisa normal. Era tudo muito sério e eu trouxe alegria.
Quando é que começou a desenvolver este gosto pela streetwear?
Pois, não sei, acho que sempre fui assim. Sempre gostei de misturar tudo e não haver regras. Lembro-me que a minha irmã não gostava nada de brincar comigo às bonecas. Na altura dos lanches ou festas eu vestia a minha Nancy com o vestido de noiva, mas com as botas da neve ou com as calças de jogging e a camisola brilhante disco. Gozavam-me imenso e diziam-me que assim não brincava. Uma vez até bati numa amiga dela de tão irritada que fiquei.
Alguma vez sentiu que o seu compromisso com a streetwear e com o caráter utilitário da roupa afetou o seu potencial criativo?
Antes pelo contrário, acho que é bastante mais difícil.
Após um afastamento de cinco anos, voltou a apresentar coleções. O que motivou este regresso?
O facto de ter amadurecido para fazer da paixão do que crio o meu negócio. Hoje termos ferramentas que ajudam a uma maior divulgação e comunicação da marca foi o impulso.
Como é que o distanciamento da passerelle impactou o seu processo de criação?
Ao longo dos 5 anos em que me distanciei da passerelle dediquei-me ao ensino. Tive uma média de 30 alunos por ano, o que equivale a 150 coleções que orientei criativamente e ajudei a produzir. Nesses 5 anos nunca criei tanto em toda a minha vida. O distanciamento trouxe-me segurança no processo criativo.
É correto afirmar que a sua experiência no ensino moldou a sua ética de trabalho enquanto designer de moda?
Fui convidada a dar aulas no CITEX mal acabei o curso. Penso que é correto afirmar que a Gambina professora e a Gambina designer se fizeram uma à outra.
Qual é a melhor maneira de se comunicar com um público jovem?
Para ser sincera, não penso muito nisso. A comunicação da minha marca tem que refletir a identidade da mesma: gráfica, divertida, urbana e criativa. Mal de mim se pensasse que isso só se aplica aos jovens.
A marca apresenta uma linguagem bastante gráfica. Quais são os códigos que melhor caracterizam a sua identidade visual?
Nem sempre utilizo, mas o azul royal e o laranja identificam-me bem.
Texto de Daniel Bento, para a revista Parq, Junho de 2020