Andy Warhol’s Diaries
texto de Vaz Fernandes
Quem é o artista mais conhecido e controverso dos Estados Unidos? Andy Warhol será talvez a resposta que agrega maior unanimidade. Filho de imigrantes Checos que se instalaram na cidade metalúrgica de Pittsburg Warhol teve a rara capacidade de se ter mantido debaixo dos holofotes durante toda a sua vida, tornando-se uma figura pública, facilmente reconhecível. Para isso contribui o facto de controlar algum meios de comunicação que o podiam promover. Por outro lado, a sua obra, depois da sua morte não foi esquecida, pelo contrário, passou a ter uma grande procura, atingindo valores recordes em prestigiadas leiloeiras, elevando assim a popularidade e prestígio do artista. Mas quem era Andy Warhol?
Apesar de ser um figura de grande visibilidade pouco se sabe sobre a sua intimidade mas uma nova série da Netflix, Andy Warhol’s Diaries vem levantar o véu, contribuindo assim para uma compreensão dessa figura que tão bem sabia esconder-se atrás de ficções que projetava sobre si mesmo.
Andy Warhol’d Diaries é uma série documental de seis episódios dirigida por Andrew Rossi e produzida por Ryan Murphy para Netflix, que tem por mérito criar um contexto cronológico onde a obra e vida do artista se cruzam, dando uma visão mais completa. O clima cultural e social de Nova Iorque é contextualizado com a produção artística a par de alguns aspetos íntimos menos conhecidos da vida do artista, e o que resulta é um retrato humano onde os medos do artista acabam por ganhar expressão. O envelhecimento, as doenças, o sucesso assim como questões sobre a relevância da sua própria produção artística estão sempre a ser questionados ao longo de todo o documentário que tem por base o livro homónimo de Pat Hackett. Publicado em1991, o livro foi escrito pela assistente do artista com quem Warhol falava todos os dias ao telefone. Tudo era gravado, mas automaticamente esquecido no fundo de alguma gaveta. Pat Hackett fez com que essa coleção de memórias se tornasse na base do seu livro que para muitos desiludiu, dada as imensas descrições da vida social do artista. Contudo o documentário soube ultrapassar esta questão trazendo muitos dos interlocutores que participaram nos acontecimentos descritos juntando assim várias perspetivas e maior densidade a questões centrais. Esta sensação de memória quase milimétrica é possível, pelo facto de estarmos a falar de acontecimentos que não se passaram há tanto tempo assim e pelo facto da Fundação Andy Warhol preservar todos os registos visuais de um homem que só parecia ter existência através de uma qualquer lente. Registar tudo o que aparecia em redor, sem um objetivo evidente era uma obsessão do autor. Por isso, há um registo documental gigantesco atualmente arquivado e pronto a ser usado, o que permitiu ter imagens de muitos detalhes particulares que se imaginariam perdidos.
Numa época que vivia fascinada pela produção compulsiva de imagens, Warhol soube colocar-se dentro desse fluxo, contribuindo também ele para a glamorização de imagens já banalizadas. A popularização do seu trabalho conta com a imagem de estrelas de Hollywood, figuras VIP da época que passavam por um processo de reprodução mecanizado com cores artificiais, tornando-se tão típicas da sua obra. A produção de múltiplos punha fim à ideia de obra única e do gesto artístico pondo em causa a aura de obra de arte. Contudo, os múltiplos como acontecia com qualquer produto publicitado tornavam o seu trabalho iconizado. Uma imagem única de Marilyn Monroe multiplicada com várias soluções de cores torna-se na sua possibilidade de dispersão mais glamorizada e desejada como ele bem compreendia.
Esse fascínio que tem pelos aspetos mecânicos que no fundo são um pilar da sociedade capitalista faz com que Warhol se veja muitas vezes como um robot. Em geral, procura não expressar uma opinião, porque evita trazer uma perspetiva moralizante. A própria construção de uma imagem assexuada compreende-se nessa perspetiva se se apanhar num cenário de subjetividade. Esta questão torna-se um dos pontos cruciais no desenvolvimento deste documentário debatido tanto por académicos como por pessoas mais próximas.
O recalcamento da sua subjetividade obedece a uma estratégia de controlar aspetos emocionais. Apesar de viver em Nova Iorque, onde gozava de uma grande permissividade sexual e de a Factory, a sua própria casa, se tenha tornado o epicentro de uma nova cultura, no essencial queer , Andy Warhol parece recalcar os seus sentimentos. Jed Johnson e Jon Gould são as suas únicas relações mais visíveis e o documentário conta com testemunhas fulcrais, como familiares e amigos que as descrevem. Nunca foram relações abertamente assumidas o que permitiu ao documentário reconstruir o ambiente homofóbico que se vivia na época, apesar de falarmos de Nova Iorque e apesar do nicho de liberdade de comportamentos que se vivia na Factory.
Um dos últimos episódios é quase na totalidade dedicada ao processo de construção de uma cultura gay vibrante gerada em Nova Iorque, abordando os seus excessos interrompidos pelo advento da Sida. O desconhecimento sobre o vírus e o efeito pandémico, assim como as mortes rápidas dentro do seu círculo de amigos conduz o artista Pop para um ambiente depressivo. Por fim, o falecimento de Jon Gould, a sua última relação emocional coloca o tema da morte, nomeadamente nas suas recriações sobre a última ceia de Cristo, no centro da sua produção. Para alguns era já uma referência ao luto dentro da comunidade gay, mas ainda assim os seus principais críticos recriminam-lhe uma posição mais política e solidária numa época em que os direitos dos homossexuais passam a ser discutidos. Na verdade, o documentário chega a especular que o artista que morreu em 1987 aos 56 anos de uma infeção grave proveniente da vesícula, seria vítima do seu pavor de ser contaminado pelo vírus, recusando-se a hospitalizar-se atempadamente. Um filme a ver especialmente quando nos é oferecida um ser complexo que nos convida à nossa interpretação final.
texto de Francisco Vaz Fernandes para PARQ_74.pdf (parqmag.com)