O amor e os demónio

texto por Carlos Alberto Oliveira

Num período extremamente difícil em que globalmente o homem vive, The Ascension, Sufjan Stevens faz uma reflexão sobre a esperança e o desalento. Depois do magnífico Carrie & Lowell, a extraordinária incursão pelo luto da sua mãe, conduz-nos ao novo álbum no qual o artista apresenta 15 novas canções que cruzam drumbeats e sintetizadores distorcidos numa introspeção, e um apelo a sermos melhores pessoas, num mundo que parece desfazer-se à nossa volta.

Apesar de estar pronto desde dezembro de 2019, o novo registo de originais encaixa que nem uma luva no caos que se tornou o ano 2020, com as suas preocupações com a tecnologia, a política americana e o que o futuro reservará para a humanidade, acentuado por este período pandémico.

The Ascension apresenta, como tem vindo as ser habitual, letras que expressam as suas fragilidades e as suas referências culturais, recorrendo a citações que vão desde o mito Gilgamesh à saga cinematográfica de Star Wars. Mas o artista explora, também, uma sonoridade diferente, recorrendo à tecnologia que reproduz a bateria e outros elementos eletrónicos. Para os momentos mais intimistas, Sufjan Stevens inspira-se nos icons Pop dos anos 80, como o George Michael e Sade.

A faixa de abertura ‘Make Me An Offer I Cannot Refuse’ constrói ambientes que evocam o disco Vespertine de Björk, com beats melódicos apoteóticos. Igualmente, ‘Video Games’, numa manta de retalhos de sintetizadores, evocando o disco Construction Time Again dos Depeche Mode, o artista rejeita a fé religiosa em favor da sua auto preservação. O poderoso ‘Death Star’ cruza o electrofunk com a Pop, numa agradável aproximação de Rhythm Nation, de Janet Jackson ‘Goodbye to All That’ encaixa-se perfeitamente na escola dos Human League.

A sua voz em ‘Run Away With Me’, manifestamente fora do seu tom habitual, assenta perfeitamente nesta atmosfera etérea. ‘Sugar’, ‘Die Happy’ e o tema titulo apresentam-se provavelmente como os impressionantes temas do artista, artilhados com uma extraordinária capacidade de composição dos elementos eletrónicos, como se de um filme de ficção cientifica se tratasse. 

‘Tell Me You Love Me’, reencontra paisagens usadas nos seus discos de inicio de carreira, enquanto ‘Lamentations’ pretende conjugar elementos épicos e íntimos, extravasando as suas próprias fronteiras. Já ‘Landslide’ desarma agradavelmente com o recurso a instrumentos analógicos, saindo um pouco da esfera tecnológica do disco.

O recurso a sintetizadores foge à nostalgia dos anos 80 no estranho “Ativan” e no tema ‘Ursa Major,’ muito graças ao input maquinal a piscar o olho aos Front 242.  Num extremo oposto, é notável o recurso da escola dos musicais em ‘Gilgamesh.’

As duas músicas que encerram o disco revelam a contraditória relação que o artista tem com a fé. ‘America’ revela o seu desalento ao reconhecer que a sua América incursa num fascismo, que usa Deus como desculpa para as suas práticas. A faixa titulo, na sua espiritualidade errante, retrata, por sua vez, a complexa e enigmática busca pelo sentido da vida.

The Ascension marca definitivamente a sua nova forma se apresentar ao mundo. Se anteriormente a sua fragilidade era contida e confinada a um espetro mais politicamente correto, neste disco expressa-se de uma forma mais confiante, sem perder a sua sensibilidade, como se finalmente pudesse revelar integralmente a sua verdade.