O sol e a lua

texto de Sofia Seixo Garrucho

fotografia de Fracisco Hartley

Ilustração/edição Ana Silva

O seu próprio nome, Soluna, une dois elementos opostos, o sol e a lua, complementares e sem os quais não existiria vida. É um bocado isto que Soluna está a trazer à música portuguesa, vida! Os ritmos africanos têm sido bem recebidos nos sistemas de som, dos clubes e das salas de espetáculo portuguesas e Soluna acrescenta-lhe ainda o Reggaeton, um género que surgiu na Jamaica em meados dos anos 70 e que tem florescido pelo o mundo inteiro desde os anos 90. Na música de Soluna encontramos ainda vestígios de Hip Hop, Tarraxo e Afro-House.

Após ter andado em tournê com Dino D’Santiago, afirmando ter sido “uma universidade”, a cantora, multi-instrumentista, compositora e produtora afrolatina residente em Lisboa desde 2019, lançou no passado mês de maio o seu primeiro EP “Gano”. Todas as canções do EP são co-produzias por Soluna. “Flaca” e “Abajo” têm o dedo do “bruxo melódico”, o produtor angolano, Dotorado Pro; “Gano” e “Mala Fama” contam com a produção do britânico Paul Seiji. As letras são todas da autoria de Soluna, mesclando de forma orgânica o português, o espanhol e o inglês.

Já existe um videoclipe para a “Gano”, dirigido por Guilherme Braz que conta com a colaboração do coreógrafo Dougie Knight (cantor, dançarino) e junta em torno de Soluna, Raissa Bhering, Izha , Lucy Val e Carolina Rodrigues, uma jovem comunidade de artistas independentes residentes em Lisboa. Sofia Seixo Garrucho conversou com Soluna sobre a sua curta mas valiosa carreira.

fotografia de Francisco Hartley com ilustração de Ana Silva

Quando começou a tua carreira musical? Só lançaste música este ano mas já eras conhecida nos palcos.

Foi por volta de 2019, quando vim para Lisboa. Comecei a trabalhar com o Dino [D’Santiago] como back vocal e paralelamente estava a dar concertos a solo em pequenas venues, como a Fábrica Braço de Prata. Fui desenvolvendo as minhas capacidades e este ano consegui lançar a primeira canção. Tive bwé paciência, mas tudo começou em 2019.

Qual foi o teu primeiro contacto com o Dino D’Santiago e como acabaste a trabalhar com ele?

Eu conheci o Dino no Algarve através de Tuniko Goulart, a pessoa que me introduziu no ofício da música. É um brasileiro, índio, baixinho, bem mau! Um craque na guitarra. Quando toca guitarra parece que está a tocar 4 instrumentos ao mesmo tempo, uma cena mesmo fora deste mundo. O Dino também o conhecia e também lhe chama “o Mestre Tuniko”. Aliás se perguntares quem é o Tuniko toda a gente sabe quem é. “É o Mestre!”. Então, conhecemo-nos através do Mestre. Ele disse “conheço um negão que canta para caralho, muito forte mesmo!” E mostrou-me as cenas do Dino e um dia por acabei por o conhecer. Foi um contacto de família, quase por assim dizer. Entretanto, tinha saído de Portugal, perdi o contacto com o Dino, mas quando voltei para Lisboa saía o “Mundo Novo” e fui à FNAC do Chiado para uma listening party onde Dino explicava cada tema do seu novo álbum. Fui falar com ele que me recebeu com uma festa “ – eia, o Sol do Algarve, do tempo do Tuniko! Ele estava a procura de pessoas para a sua banda e surgiu o convite. É curioso como as coisas mudaram tão rapidamente em dois anos. Os primeiros seis meses a trabalhar com ele foi bwé especial. Tenho mesmo bwé carinho pelo Dino.

E esse encontro de certa forma marcou-te?

Totalmente! Deu-me pedalada para eu poder estar agora em palco sozinha, acompanhada de uma DJ, Não há muita história, estou eu a cantar, tenho de fazer hype no people, tenho de transmitir, cantar, dançar ao mesmo tempo, manter o fôlego, brincar com as dinâmicas. Trabalhar com o Dino durante dois anos foi como andar na universidade, porque realmente foram quase três anos de experiências e ensinamentos.

Foi ver, observar, estar no ambiente, conhecer o que é a indústria e perceber o que é Lisboa, que eu não fazia a mínima. Mais uma vez, o que é que é, na prática, ser músico? Hoje em dia, o que é fazer disto carreira e tentar que dê mesmo certo? Eu vi o que é sacrifício, estar aí, tudo o que envolve… foi mesmo bwé bwé importante.

Para além de cantares, tu és multi-instrumentalista e produzes música. Neste teu novo EP, “Gano”, tens duas canções produzidas por ti. Já na “Flaca”, que é um dos singles, tu deste o teu toque, não foi?

Sim, exatamente, há uma faixa produzida por mim, que eu já tocava muito ao vivo e isso foi bwe importante para perceber como as pessoas reagiam à canção. Eu punha a energia na música e partilhava-a com as pessoas, se elas curtissem eu ia saber if I was doing something right. E é bwé importante ver as diferentes maneiras que diferentes pessoas reagem às músicas.

“Flaca”, o teu primeiro single, é um hino feminista, correto? Quem é a Flaca?

Sim, total! E finalmente a grande questão chegou (risos). Eu estou a falar de uma pessoa em específico, mas também estou a falar duma situação imaginária. Imagina este cenário: chegas a uma festa como as que havia em Lisboa, em 2019, good vibes e só pensas em ir dançar.

A “Flaca” começa nesse momento em que tu chegas e de repente estás no dancefloor a trocar com alguém e uma pessoa, uma rapariga neste caso, começa a comunicar sem palavras. Só no final da canção é que eu falo com ela, mas estamos sempre a trocar. Ela está a dançar, eu estou a dançar e ambiente convida toda a gente a dançar.

Existe uma comunicação entre corpos e não só entre palavras.

Hmm Hmm!

Tu sentes que a música consegue mudar o paradigma da noite, em questões de misógina para que haja mais respeito uns peles outres?

Ya! O reggaeton de hoje já não é do tipo “peguei na gaja e pá pá pá”, tipo essa cena que quase incita o abuso sexual, sabes? Isso está a desaparecer do mainstream. Claro que continua a haver pessoas que pensam assim. Válido: a música é expressão. Mas é bom que esse tipo de pensamento esteja cada vez mais a sair do mainstream. Tens tipo, sei lá, J.Lo com o Maluma a cantar “Todo lo que tengo es pa’ ti, pa’ ti”, letras bwé fofinhas, tipo o “Flaca”. Tu podes na mesma perrear sem estar a incitar uma ideia abusiva. A noite pode parecer que não te ensina nada, mas entra no teu subconsciente através dessas letras. É bom que esta realidade esteja a mudar, até no próprio tarraxo.

Tu misturas o tarraxo com o reggaeton, onde foste buscar estas raízes?

Eu nasci na Argentina e toda a família do meu pai é de lá e tudo o que é latino-americo-hispanico tem como o reggaeton e o perreo e o Hip Hop como vibe. E o tarraxo vem da parte da minha mãe, que vem de Angola. Eu cresci em Espanha, que é uma prolongação do que é a cultura argentina, latina, é por isso próxima. E agora estando cá em Portugal conectei outra vez com o tarraxo, então estou mesmo no meio destas culturas, a latino e a africana.

Que diferenças sentes entre cantar em português ou espanhol?

Então, em português eu sinto que o idioma pede coisas mais graves. Quando canto as partes mais graves eu vou para o português, porque parece-me mais fácil, puxa mais a voz da garganta, mais do peito. Depois o espanhol, que é a minha língua nativa, o léxico e a expressão está mais solta e a nota chega a notas mais altas, parece que fica mais anasalada.

Naturalmente, quando eu estou a fazer uma melodia mais latina, uso o espanhol, surgem mais coisas, mais palavras. Se for uma coisa mais calma vem o português à cabeça, mais balada. E cada canção parece que pede uma coisa diferente de cada idioma.

Teres essa mistura de culturas, angolana, portuguesa e argentina dá-te mais ferramentas criativas para compores?

Na verdade, foi o primeiro grande entrave, que não é de agora. Dos 14 até aos 22 anos andei a explorar todos os idiomas e tornava-se um problema. Eu sinto que neste momento da minha vida, estou a querer cantar principalmente em espanhol mas também um pouquinho em português. A falar normalmente misturo muito: estou a falar em português e do nada ponho uma palavra em inglês, depois uso uma expressão do espanhol.

E no início era bwé confuso, porque eu vivia em Portugal, se calhar em inglês não, porque as pessoas não vão perceber. E queria também cantar em espanhol, mas isso em Portugal também não fazia sentido. Estando em Espanha, falar em inglês ou português também não fazia sentido. Mas sinto que cada vez mais estão a surgir artistas que cantam em duas línguas. Tens Snow Tha Product, que faz rap em espanhol e inglês. Tens a Paloma Mami que faz o mesmo. O pessoal com raízes latinas está a pegar neste cabaz e a ter a coragem de aceitar e exportar em massa a junção destes idiomas. Do nada tens artistas como a Kali Uchis a abraçar as suas raízes latinas e a fazer um álbum quase todo em espanhol, ah, vale, vale, vale! E foi muito inspirador ver isto, ver esta aceitação, ver as pessoas aqui em Portugal a cantar as letras dela, de repente tu ficas “wow, o pessoal curte a nossa cultura”. Então, I took my risk!

Dentro da nossa indústria portuguesa eu sinto que estou a quebrar as regras para abrir espaço. Eu vim na minha humildade partilhar esta minha mistura maluca para responder às pessoas que perguntam “de onde é que tu és?” Eu fico constrangida: espera aí que eu tenho de explicar a minha história de vida. Então venho bwé tranquila, fazer a minha cena e as pessoas ficam bwé: “relatable”. Porque na verdade, as pessoas que vivem em Lisboa têm um pai dum sítio, a mãe de outro, vieram para Portugal de contextos diferentes. Tens pessoas romenas, inglesas, francesas, venezuelanas, Brasileiras, dos PALOPs e de muitos outros sítios, então tens aqui um melting pot de segundas, terceiras gerações que já não são emigrantes. É Portugal.

Definir identidade, nacionalidade, de dizer “eu sou daqui, eu sou dali”, tornou-se uma questão muito grande para mim não porque eu não saiba de onde é que eu sou, porque sou de todos esses sítios que referi agora, só que normalmente estamos habituades a pôr tudo numa caixinha, porque é mais fácil. And that’s fine, para perceber também. A Kami, por exemplo, é brasileira, mas está aqui há tanto tempo que também já é daqui, está no meio, já não é Brasil nem Portugal. O próprio Dino também, já não é Cabo Verde nem é Portugal. Esta questão é algo que pretendo explorar na minha música. Como disse, da minha humildade, sinto que estou a criar impacto disruptivo, mas eu vim mesmo na humildade! Estou só a trazer a minha verdade para cima da mesa.

Texto de Sofia Seixo Garrucho para PARQ_75.pdf (parqmag.com)

Fotografia de Francisco Hartley

Styling de Ana Silva

Make Up de Baludna

direção criativa e ilustração de Ana Silva

Soluma veste roupas Mustique com acessórios Pipilarpi

Artigo financiado pela Near Protocol

Agradecimentos Mãe Solteira Records DAO