Andreia Santana e Anna Sophie-Berger
Texto de Carla Carbone
Não é possível falar da atual exposição “Shell Game”, patente na Galeria Filomena Soares, sem voltar ao passado e mencionar “The Outcast manufacturers”, decorrida em 2019, ou “The Skull of the Haunted Snail”, realizada um ano depois, no espaço Hangar. Em todas elas, Andreia Santana, apresenta um fio condutor, o ferro que se estende pelo espaço da galeria e se contorce no ar até caminhos insuspeitados. Em Shell Game” o vidro pousa sobre a estrutura em ferro. Como contentor, compreende uma função de recetáculo de vida. Vida que se concebe como detentora, tal como o Homem, de uma essência espiritual. A artista pretende, com estas esculturas, testar as propriedades dos objetos, enquanto potencial abrigo de seres vivos, como bactérias, insetos e fungos.
Santana terá relatado que, a um dado momento, na exposição do Hangar, observou a instalação de pequenos insetos, justamente no interior desses recetáculos de vidro, e que os mesmos se acomodaram e habitaram o espaço de modo tão natural. Para Santana a obra não se esgota no momento em que é concebida. Tão pouco termina o seu ciclo de vida no instante em que é fruída pelo visitante. Ela estende-se para lá do espaço da galeria, e do próprio lugar museológico. Com os pequenos seres vivos as peças ganham outras vidas, e para a artista não constitui problema que as peças se extingam, ou até se deteriorem. A vida para lá da obra interessa-lhe muito mais.
Outra preocupação da artista é o alcance ecológico das suas peças. Para Santana existe uma preocupação ambiental. Por esse motivo há um critério de seleção dos materiais, e é por isso que se tem vindo a verificar o uso, e a permanência, do ferro nas suas obras, para além da mais recente utilização do vidro.
As formas escultóricas, que se vão revelando, ao longo do espaço, tornam-se, cada uma delas, um desafio percetivo em relação às anteriores. Na exposição “The Skull of the Haunted Snail”, por um lado, o efeito era de uma matéria viscosa. As formas vítricas pareciam derreter e pousar sobre o material duro do ferro negro. Suporte dessas mesmas formas aquosas. Em “Shell Game”, por outro lado, o espaço é mais luminoso e envidraçado. As mesmas formas vêem-se agora diluídas, tornam-se transparências, vidros translúcidos que proporcionam um “ver através de”.
E é nesse “ver através de” que a artista nos oferece um novo esforço do olhar, diverso e múltiplo. Quem esperar encontrar consensos, um repouso no olhar, não o vai encontrar facilmente. Cada peça que surge diante dos nossos olhos, questiona a seguinte.
Esse exercício que nos desafia a perceção é reforçado pelas instalações de Anna-Sophie Berger, também presente na exposição Shell Game.
Um retrato, colocado sobre a parede, põe à prova o visitante, pela estranheza que causa. Trata-se de um perfil, ou de um rosto representado de frente? O lado esquerdo do rosto, no retrato, parece o espelho do lado direito. Porém o rosto não parece representado na totalidade. Cada parte aparenta estar inacabada e depois unida. Falta algo. Pretenderá, a artista, reforçar, cientificamente, algum princípio gestaltiano? Ou, pelo contrário, no conflito percetivo que desperta, põe a nú a nossa impossibilidade de obter um conhecimento absoluto sobre as coisas? E em que o mesmo conhecimento depende do ângulo em que nos situamos, e do contexto em que nos encontramos? Pois dizia Merleau-Ponty “A física da relatividade confirma que a objetividade absoluta é um mero sonho, demonstra como a observação se encontra rigorosamente associada à localização do observador e de como não pode ser abstraída dessa situação particular”.
Texto de Carla Carbone
Galeria Filomena Soares, Rua da Manutenção, 80, Xabregas, Lisboa . www.gfilomenasoares.com