Texto por Miguel Rodrigues

“Não sou um homem. Não sou uma mulher. Não sou hétero. Não sou homossexual. Também não sou bissexual. Sou um dissidente do sistema sexo-género. Sou a multiplicidade do cosmos presa a um regime político e epistemológico binário, gritando à vossa frente”. É desta forma que o filósofo transgénero e ativista queer PAUL B. PRECIADO se define. O excerto está incluído no recente livro “Un apartamento en Urano: Crónicas del cruce” (2019), no qual o autor questiona e analisa as normas políticas e as atuais estruturas sociais, culturais e sexuais.

PAUL B. PRECIADO, que nasceu BEATRIZ PRECIADO em 1970, em Burgos (Espanha), é um dos mais influentes autores contemporâneos sobre questões de género, corpo, identidade, sexualidade e teoria queer. Sob a mentoria de ÁGNES HELLER e JACQUES DERRIDA , estudou Filosofia e Teoria do Género na New School for Social Research de Nova Iorque. Posteriormente, obteve um doutoramento em Filosofia e Teoria da Arquitetura pela Universidade de Princeton.

Segundo a revista Art Review, PAUL B. PRECIADO é também uma das 25 pessoas mais influentes da arte contemporânea, devido ao seu trabalho de curadoria de arte. Entre 2011 e 2014, foi diretor de Programas Públicos do Museu de Arte Contemporânea de Barcelona (MACBA) e diretor do Programa de Estudos Independentes (PEI). Foi também curador de Programas Públicos da 14.ª edição da Documenta, que ocorreu em Kassel e Atenas em 2017. A Documenta acontece de 5 em 5 anos e é a maior exposição de arte contemporânea a nível mundial. Recentemente, PRECIADO foi curador do pavilhão de Taiwan na 58.ª Exposição Internacional de Arte – Bienal de Veneza 2019.

Em 2002, lançou o livro “Manifesto Contrassexual” sobre a construção política e social do sexo e a produção da sub – jetividade como forma de resistência, que o tornou numa figura de referência do pensamento queer e do ativismo trans. Embora o “Manifesto Contrassexual” apenas tenha sido editado em Portugal pelas Edições Unipop em 2015 (13 anos após a publicação do original), continua a ser uma leitura imprescindível nos dias de hoje. Influenciado pelas teorias de JUDITH BUTLER , M ICHEL FOUCAULT e DONNA HARAWAY, o filósofo espanhol renuncia a ideia de uma identidade sexual fechada e determinada naturalmente. É também autor de outros livros de referência como “Testo Yonqui” (2008) e “Pornotopía” (2010).

PRECIADO acredita que o feminismo é necessário mais do que nunca como resposta à ordem social altamente nor – mativa. Defende também que identidade de género e a raça são uma invenção do patriarcado colonial desde o século XV. “A nossa tarefa não deve ser a identificação, mas sim de não identificação contra as políticas heteropatriarcais, que defendem que se uma mulher não for mãe, é uma pária”, afirmou em entrevista ao El País, em abril de 2019.

Em 2014, PRECIADO anunciou que estava em processo de transição do sexo feminino para o masculino. Acredita que a homossexualidade e a heterossexualidade são invenções políticas. É um assumido defensor da diversidade e vê a transexualidade como um ato político. Por isso mesmo, o autor do “Manifesto Contrassexual” tenta evitar a utilização do sistema binário (homem-mulher ou masculino-feminino). Em entrevista ao jornal EL Mundo, em abril de 2019, afirma que este sistema tem como objetivo “segmentar a população em dois nichos de reprodução biológicos, estabelecendo normativamente a heterossexualidade como núcleo familiar”. No entanto, este paradigma entrou em crise na década de 40, “porque a medicina confirmou que existem variações genéticas, morfológicas e cromossómicas”. “Assim nasceu a inter e a transexualidade, de modo a aplicar operações e hormônios e redirecionar os corpos para o binarismo legal”, acrescentou na mesma entrevista.

O seu processo de redesignação de género de BEATRIZ para PAUL, através de injeções hormonais, mutações no corpo e mudança de nome foi o ponto de partida do recente livro “Un apartamento en Urano” (ainda sem data de lançamento em Portugal). Além de abordar questões relacionadas com a transição de género, o filósofo e comissário de arte espanhol reflete também sobre a crise grega, as novas for – mas de violência masculina, o feminismo, a apropriação tecnológica do útero, o movimento zapatista no México e a américa de Trump, por exemplo.

A maior parte da sua obra baseia-se na análise da experiência humana que se encontra em espaços intermédios ou de transição. Espaços que rompem ou se opõem às for – mas de poder, quer políticas, identitárias ou sexuais. “A travessia é o lugar da incerteza, da não-evidência, do estranho. E isto não é uma fraqueza, mas um poder”, afirma o ativista. Para PENSADO, os migrantes são aqueles se encontram numa condição de maior cruzamento, na medida em que atravessam os limites de género, geográficos, políticos, nacionais e sexuais.

“A mudança de sexo e a migração são as duas práticas de travessia que, ao porem em xeque a arquitetura política e legal do colonialismo patriarcal, da diferença sexual e do Estadonação, colocam o corpo humano nos limites da cidadania e até do que entendemos por humanidade. O que caracteriza as duas viagens, para além do deslocamento geográfico, linguístico ou corporal, é a transformação radical não só do viajante, mas também da comunidade humana que o acolhe ou rejeita. O antigo regime (político, sexual, ecológico) criminaliza todas a práticas de travessia”, declara num fragmento do novo livro.

Defende abertamente que o sexo é uma imposição política e confessa que enfrentou desafios quando começou a ter “uma aparência masculina e continuava a ter um passaporte com identidade feminina”. “Cruzar a fronteira era um desafio. Apercebi-me da precaridade do nosso estatuto de cidadania”, disse à revista ICON em junho de 2019. Ao questionar e atravessar o regime de poder instituído, o percurso do autor espanhol possibilita uma reflexão enriquecedora sobre a humanidade. O constante apelo ao afastamento das normas e a procura pela liberdade colo – cam PAULO B PRECIADO na linha da frente dos estudos de género e da teoria queer.