Entrevista a Lovy
Por Francisco Vaz Fernandes
Fotografia de João Victor Czepak
A cultura Ballroom surge em Nova Iorque criada por pessoas negras e latinas num contexto marginal dentro da comunidade LGBTQ+, onde se originou o voguing, uma expressão artística inspirada nas poses que as modelos faziam em páginas das revistas de moda, como a Vogue. Os voguers agrupados em família, as houses, encontravam-se nos Balls e desfiam-se em várias categorias onde a feminidade tradicional tanto é glorificada como é subvertida nos seus ideais de beleza, sexualidade e classe. A partir dos anos 90 quando o Vogue começa a entrar no mainstream assistimos a um crescente interesse por essa cultura criando-se ramificações que chegam a outros países que recriam todo esse ambiente, nas suas principais cidade, tornando esse movimento em algo global e inter-geracional. Portugal não escapa a esse crescimento que tem tido a capacidade de se manter fiel e autentico as origens. Para explorar a cultura de Ballroom em Portugal entrevistamos Lovey a fundadora e Mother da Kiki House of Musa, a primeira house de Portugal fundada em 2021.
Como surgiu o Ballroom em Portugal, porquê promover uma cultura aonde não tínhamos tradição?
Nos anos 60 em Nova Iorque o Ballroom surge de uma urgência sentida entre as pessoas LGBT+, e em especial dos grupos latinos e negras que passam a encontrar-se regularmente nos balls.. Na verdade eram pessoas não brancas que se sentiam descriminadas mesmo dentro da comunidade LGBT+. Dentro de um ambiente que já era underground tiveram necessidade de criar um espaço que fosse à parte onde se sentissem aceites e mais seguras . Os Drag Balls já vem dos anos 20 já é uma prática de celebração e arte com uma identidade própria, mas ainda assim existiam dentro da sua comunidade práticas descriminatórias, daí a necessidade de criar um espaço diferente onde essas pessoas pudessem expressar o que realmente são em segurança, em celebração e resistência.
Mas como transpões esse contexto americano para Portugal e porque achas que ele é necessário no nosso contexto?
Essa urgência que se expressava originalmente em Nova Iorque e ali ganhou uma identidade acaba por se encontrar em todo o mundo, São o mesmo tipo de urgências, daí a necessidade de criar espaços com o mesmo tipo de especificidades em outros locais, adaptados às realidades locais. Eu estive a viver em Nova Iorque de 2017 até 2019 durante um período menos positivo, em que estava a passar por questões de identidade, sobretudo relacionadas com a minha mulheridade, a minha sexualidade e identidade étnica/racial, e senti que ali era um espaço que me permitia compreender e expressar isso. Eu amei a arte e a liberdade e o apoio que sentia dentro daquele espaço. Quando voltei a Portugal senti a falta desse espaço e percebi que havia a necessidade de o encontrar e cultivar, para mim própria e para todas aquelas pessoas que precisam e que não tiveram a oportunidade de viver aquilo que eu experienciei em Nova Iorque com a comunidade Ballroom de lá. Eu sei que há pessoas que só olham para o bolo feito, porque a arte que surge da Ballroom é linda e muita gente quer imitar, mas o meu objetivo aqui em Portugal é ir além disso. O objetivo é criar e cultivar a base, o meio e a comunidade. A arte vai ser a consequência disso. Há muita gente que olha e quer, porque é bonito é valioso, mas não é esse o objetivo imediato.
Então vamos falar do principio. Tu chegas a Portugal, fundas o Ballroom, como é que esse comunidade se junta e se organiza?
Eu não posso dizer que criei o Ballroom em Portugal, porque estamos a falar de uma comunidade que se foi juntando e eu apenas sou uma das pessoas que esta neste momento a plantar as sementes. Eu sou uma das líderes e orientadoras da comunidade, e sou a mãe da minha kiki house, the House of Musa. Antes de chegar a Portugal já havia algumas pessoas que tinham tido contacto lá fora com o Ballroom, com quem já me tinha cruzado. Mesmo antes disso já havia pessoas de fora que vinham a Portugal dar workshops, foi até assim que fiz a minha primeira aula. Sempre houve gente que olhava para o Vogue e queria imitar mas não percebia exatamente o que que era. Também em Portugal havia vontade e curiosidade. Quando cheguei a Portugal decidi abrir as minhas aulas Musa Chapters, de uma hora e meia, intensivas, num espaço meio intimista que eu tinha alugado. Não era a única, nessa mesma altura outros projetos por outras pessoas começaram a surgir como o Lisbon Vogue Sessions e o Vogue Workshop Series. Então estas sementes estavam a multiplicar-se. No meu caso, durante o curso fui percebendo que havia pessoas muito especiais e que o que nos unia naquele espaço não era apenas dançar Vogue, era todo um processo que estávamos a passar e que nos fazia estar juntas. Algumas das pessoas que hoje estão na minha kiki house, que pertencem à minha família, as Musas, surgiram desse contexto de aulas. Eram aulas de Vogue mas fora disso tínhamos os nossos momentos de conversa, de troca de experiências onde nos conhecíamos melhor, dai que o Ballroom seja uma cultura que nos coloca a pensar enquanto comunidade mais que uma prática artística. A arte resulta de todo esse processo de auto-conhecimento.
E onde é que vcs se encontram?
Inicialmente, em 2019 era num estúdio chamado 100 Makas, onde eram as minhas aulas intensivas. Depois eu comecei a dar aulas na Jazzy e outras escolas grandes que atraem mais pessoas para o Vogue, mas cá está, encontramos entusiastas que tem contacto, gostam e depois vão-se embora porque não são pessoas que pertençam a comunidade. Daí a necessidade de ter um espaço à parte, na altura as Musas ainda não eram uma Kiki House mas sim um grupo informal que cultivavam o estar em comunidade. Um espaço nosso mas ao mesmo tempo aberto para aqueles que precisam e queiram se juntar. A ideia era passar a semente para outras pessoas e por isso começamos a criar jams de House&Vogue Beats onde pudesse haver o cruzamento entre pessoas de outras comunidades e estilos underground, para depois passarmos especificamente a cultivar uma comunidade Ballroom com encontros orientados por mim. São encontros semanais num espaço chamado NADA, que fica em Marvila. É um espaço gratuito, acessível a todos que queiram fazer parte da comunidade, focado da comunidade LGBTQ+, pessoas não brancas e imigrantes em Lisboa.
E o que fazem exatamente nesse dia de encontro?
O espaço é muito especial porque o NADA apoia-nos e dá-nos a oportunidade de estar lá gratuitamente . É uma sala muito completa, tem cabine de dj, sistema de som e de luzes profissional, microfone, então é um lugar de encontro com um ambiente bem underground perfeito para treinar e simular um Ball. Não é um ball. Ou seja, não vamos para um evento, vamos lá para um espaço de partilha e formação e eu estou lá para orientar os participantes em termos de toda a historia da cultura, categorias e procedimentos. Há momentos que só estamos a conversar, outros em que vemos documentários relativos a cultura, também podemos partilhar refeições. É um espaço mesmo livre. Muitas das vezes acabo por dar aula aos membros mais iniciados, mas o intuito é mais ser um acompanhamento, uma orientação e tudo isso é gratuito.
Imagino que seja um grupo informal, mas quantas pessoas estariam envolvidas?
Umas 15 em geral. Há sempre pessoas a entrar e a sair. Experimentam mas pode ser que não se identifiquem tanto com espaço das Musas. Nós temos uma vertente muito espiritual e mística também. A cultura do Ballroom em toda a sua beleza que gere alimenta muito o ego e o que eu sinto que as Musas não querem chegar ao topo assim. Querem desenvolver um percurso autêntico em conjunto com calma. Não temos que nos forçar a ser algo que não somos ainda e isso leva tempo.
E qual o vosso objetivo? Estão a pensar a longo ou curto tempo?
Quando chamei à família, à minha house, Musa, foi porque sinto que nesta house, as pessoas que venham ao nosso espaço sejam suas próprias musas, não no sentido idealista e fetishizado da palavra musa, mas no sentido que todas nós temos algo aqui para fazer, uma missão. Eu sinto que a sociedade nos tenta moldar muito e cria muita pressão e opressão à volta da energia feminina, e o objetivo é desconstruir isso, essa programação da sociedade, e criar espaço para a autenticidade. É um processo longo. Nos temos esse objetivo, é um objetivo longo que queremos passar ao máximo numero de pessoas possível. Não necessariamente que sejam da house, mas fomentar essa autenticidade à nossa volta. Então o objetivo não é algo para agora, pelo contrário, a longo longo termo. Os troféus que aconteçam nos Balls que sejam uma consequência desse trabalho que desenvolvemos, mas não o nosso ponto de foco. Os troféus vão chegar pela autenticidade
Pose, uma serie da Netflix que foca os Ballrooms em Nova Iorque trouxe esta cultura para o mainstrem. Qual a importância desta serie dentro da comunidade?
Trouxe pessoas que participam nos balls, atrizes trans, pessoas que tem contacto com a comunidade e muitas daquelas histórias são inspiradas em pioneiros e outras pessoas importantes para a história da comunidade. Considerei bastante informativo e pode consciencializar as pessoas para esta realidade. Claro que há muito coisa romantizada que pertence a dinâmica de um formato televisivo como esse. Mas acredito que tenha muitos aspetos positivos. Tive amigos que participaram nas filmagens e isso representou dar-lhes trabalho, dar visibilidade a quem faz parte da comunidade. Muitos a partir daí tiveram maior projeção e conseguiram mais trabalhos. Isso foi muito importante. A nossa comunidade é underground mas o objetivo não é ficarmos underground. Também não é ser trendy, comercializada, mas sim consciencializada. Se querem contratar voguers com a magia da ballroom contratem pessoas da ballroom e não pessoas que vão imitar.
O enredo de Pose passava muito pelas rivalidades entre as houses rivais, aqui como acontece?
Em Portugal já existem várias casas. Nos somos a primeira kiki house, criada de origem. As outras que cá existem são polos em Portugal mas que foram criadas em outros lugares. Refiro-me à kiki scene, um pouco diferente da major scene que é mais competitiva e por ser a scene original tem casas com muitos membros e polos em várias partes do Mundo, Londres, Paris, Coreia do Sul, etc. São de facto casas grandes. Nessa major scene exige-se um outro nivel e aprimoramento dos outfits, por exemplo. Já a Kiki scene é mais focada em colaborar em comunidade e nos jovens que se calhar não têm tantas possibilidades de preparar outfits tão luxuosos ou investir tanto dinheiro para ir aos balls. Em Portugal é mais relevante a kiki scene, os jovens podem fazer arte a partir da reciclagem de materiais por exemplo. É esse o incentivo, não precisam de investir tanto dinheiro, mas sim ser criativos. Sim, existem várias kiki houses em Portugal, encontramo-nos em treinos, mas sobretudo nos balls. Especialmente a partir de 2021 passamos a ter balls onde as casas batalham. Também pessoas sem casa participam nestas batalhas. Criou-se uma grande dinâmica com um crescente número de eventos e participantes. O shade faz parte da Ballroom e deve ficar nas battles. Fora das battles somos todos uma comunidade e devermo-nos apoiar nas nossas lutas. Ou deveria ser assim, embora haja quem lance shade desnecessário e isso pode criar sim mais rivalidade entre as casas, sobretudo se houver rivalidades entre os líderes.
E esses balls acontecem apenas para a comunidade ou são abertos?
O mais importante é preservar o espaço para que seja seguro para quem lá está. As pessoas que participam expõem-se muito nesse local. Os Balls são para a comunidade mas também existem bilhetes para quem queira assistir, mas consciencializamos sempre à entrada que é importante que quem esteja lá dentro se sinta seguro. Vão encontrar-se com uma comunidade LGBT criada maioritariamente por pessoas trans e não brancas e que são a prioridade. Então alguém que não se sinta bem com alguém que lá esteja é convidado a sair do espaço. Há pessoas trans, por exemplo, que no dia-a-dia ainda não estão no momento de se assumirem como são, e é aqui na ballroom que se sentem seguras para o fazer. Então temos que preservar estas identidades nesse espaço.
fotografia João Victor Czepak para PARQ_75.pdf (parqmag.com)
styling Rabecca Zola
produção Jheni Ribeiro
maquilhagem Sofia
cabelo Pedro Chalbert
assistente de fotografia Luana Piedade
Talentos @inloveyy, @bixagoxtosa @fabzlopezz @miss.panterona
Agradecimentos a ETIC
Mother Lovey Sereia Musa
(ela/dela)
“Eu quero abraçar todo o meu poder e os meus dons para viver no meu maior potencial enquanto ser humano, e eu quero ajudar as pessoas à minha volta a fazer o mesmo.”
Miss Panterona Musa
(ela/dela)
“O meu sonho artístico é ser Runway Model, ter as minhas criações, a minha marca de maquilhagem.”
Pony Fab Musa
(ela/dela)
“Saber que consegui mostrar o meu eu para o mundo e perceber que as pessoas foram muito felizes com a minha presença na vida delas.”
Bixa Goxtosa Musa
(ela/dela; ele/dele)
“O meu sonho é atingir as minhas metas profissionais, ser um grande bailarino.”