Soma

Texto por Hugo Pinto @hugopintomurtal

fotografia por Pedro MKK @pedromkk

Branko tem novo disco, chama-se Soma e está a dar que falar. A PARQ quis saber mais e foi ao estúdio da Enchufada, em Campo de Ourique, falar com ele.

João Barbosa é o homem por detrás de Branko. Fez parte dos Buraka Som Sistema, fundou uma editora, a Enchufada e desde 2013 lança-se a solo, primeiro com um EP, depois com o magnífico Atlas… Relembra os Buraka e o início da sua carreira a solo com saudade mas não saudosismo.

“Eu mantive o meu método de trabalho bastante parecido. Já na altura estudava engenharia de som e entretanto aprofundei este saber mais técnico mas a partir dos 2000’s tornou-se mais fácil fazer som, bastava um microfone SM58 de 150 euros e um computador com uma placa de som. Desde aí houve muitos avanços técnicos, muita coisa que hoje em dia é mais fácil de fazer mas todo este som e estes géneros de agora devem muito a uma atitude DIY que apareceu nessa altura”.

O primeiro álbum dos Buraka Som Sistema, From Buraka To The World, foi seminal e uma pedrada no charco cujos estilhaços duram até hoje, na altura tinhas consciência disso?

Acho que sim, há um momento quando te apercebes que as pessoas na pista de dança estão se a rever naquilo que estás a fazer e sentem-se representadas. Repara que eram os tempos do Captain Kirk e do clube do Mercado no Bairro Alto e a maior parte das pessoas que ali estavam era malta dos subúrbios, malta da linha de Sintra que apanhava o comboio e íamos todos desaguar ali aos Restauradores.

Quando o Afrotuga apareceu eu achei que era um som que iria rebentar no mundo inteiro, tal como por exemplo aquele som lounge de Viena.

Porque é que tu achas que isso não aconteceu?

Maioritariamente por dois motivos. Um deles é a falta de estruturas, de uma indústria capaz de agarrar e dar voz e mundo a esses projetos todos. Quer os que foram criados, quer os que poderiam ter sido criados se houvesse esse apoio. Essa estrutura que tu tens em Viena, tens na Alemanha, e que embora seja local consegue ter contatos e impacto no mundo inteiro..

Por outro lado uma certa incapacidade de Marketing, de criares um movimento, de te bateres por um género, de seres embaixador de alguma coisa.

Nessa altura, quer nesse lounge em Viena , quer por exemplo no dubstep, as pessoas envolvidas sentiam-se parte dum movimento. Em Portugal estava cada um fechado na sua bolha. Em Portugal as pessoas acham super ofensivo imitarem-se umas às outras ou inspirarem-se umas nas outras. E hoje em dia, aquilo que sinto mais é que se celebram pouco as pessoas, os heróis e os arquitectos das culturas.

Tu vês os Estados Unidos e sabes quem como e onde é que as coisas começaram. Tu sabes quem é o KRS-One, que ténis os Run DMC calçaram, tu tens essa noção toda.

Aqui em Portugal não. A memória apaga-se muito facilmente e uma pessoa desaparece.

Não há nomes de ruas na cidade de Lisboa de pessoas com menos de 500 anos.

Façam agora uma rua Sara Tavares. Agora é o momento para conseguirmos criar essa representatividade e essa perspectiva para que as pessoas da próxima geração saibam e possam criar alicerces. Caso contrário estamos sempre a começar do zero.

Pensa por exemplo naquilo que é um Goldie na cultura Drum And Bass. Ele é um herói, entrou em filmes, há marcas de roupa a chamarem-no para campanhas, há toda uma exposição. Eram pessoas que nós ouvíamos aqui há 20 anos. E em Portugal? Onde estão essas pessoas? Pessoas como o João Gomes por exemplo”.

Durante a pandemia, no 25 de Abril, houve aquele momento mágico de tu com o Dino Santiago na Avenida mas tu não és um tipo muito político, não te vejo envolvido em causas políticas…

Não é uma coisa que me chame, não me sinto de todo ativista. Obviamente que há momentos que são muito especiais para mim, um deles é descer a Avenida da Liberdade no dia 25 de Abril. Seja com amigos ou com o cão, a filha, a namorada, seja com quem for, essa tarde está sempre marcada para descer a Avenida. A minha ideologia está muito mais aí. Na celebração da liberdade, da diversidade, da representatividade e de todas essas coisas”.

Tu também tens uma loja de sneakers no Chiado, a Komum, como é que te surgiu essa ideia?

Sempre foi algo que eu cultivei e admirei mas na pandemia tive tempo, fechado em casa, para explorar mais e aprender e apercebi-me que era algo que eu gostava mesmo e que sentia falta de haver um espaço que tivesse uma perspectiva mais abrangente e que se afastasse das marcas e modelos que estão a sair no momento mas que se interessasse mais por modelos antigos e por edições icónicas.

E é um sucesso?

É obviamente um negócio de paixão mas não dá prejuízo.Eu adoro lá ir e passar uma tarde com a equipa que lá está na conversa sobre ténis e modelos relacionados com a música como os modelos de MF Doom ou De La Soul.

E há também a Enchufada?

A pandemia afetou muito as estruturas destas microempresas na área cultural.

Nós passámos de estar muito ativos, com muitos EPs, compilações e artistas novos, para uma perspectiva mais a longo prazo. Agarrar num artista, trabalhar num projecto e acompanhar esse projecto. Trabalhar para álbuns e construção de carreira. Aquela coisa do 12” para a pista deixou de nos interessar. Agora estou a trabalhar com um MC moçambicano chamado Iron Br11 e estamos aqui os dois a construir o álbum, a desenvolver as coisas e quando sair já é uma coisa mais estruturada.

Mas não foi, nem é, só em Portugal que há esta fusão atual de música electrónica com ritmos nativos, da Nyege Nyege em África, aos sons da américa latina. Há qualquer coisa de fresco a acontecer…

Sim, há um momento muito interessante que é a intersecção de uma música mais ancestral com este lado eletrónico. Isso já gerou muitas cenas musicais, desde a cumbia eletrónica ao médio oriente do Omar Souleyman e esta sintetização acaba por criar uma normalização e uma facilidade do acesso à música muito maior do que se aquilo fosse tocado por um instrumento ou por outro,,, Mas aquilo que eu acho mais interessante ainda é olhar para a pop nacional e ver um artista como o Slow J a esgotar dois Altice Arenas. São 40000 pessoas a pagar bilhete para ver o Slow J. Mais atrás o Nélson Freitas lançar um disco e ter um milhão de plays em 24 horas. De repente tu percebes que este desbloqueio, este som, estava mesmo aqui. É muito interessante perceber que isto que está a acontecer é uma revolução do underground mundial mas, no nosso caso aqui em Lisboa, isto já está mesmo na pop.

E tu que és bastante viajado, a que som deveriam os nossos leitores estar atentos agora?

Há tanta coisa a acontecer interessante no mundo inteiro agora que se torna difícil manter um pin aqui ou ali mas… Talvez daquilo que eu estou mais atento e acompanho seja o Brasil. Eu acho que está a haver um bocadinho de revolução na cena indie rock ou indie samba que finalmente começou a adoptar estas nuances mais eletrónicas.

Por exemplo os Tuyu que participam no Soma estão a fazer um caminho incrível nesse sentido, toda a geração de vocalistas e artistas de Salvador como a Luedji Luna por exemplo, pessoas que estão a fazer algo entre a electrónica e a dança até ao som mais terra a terra. Eu acho que a transversalidade desses artistas é mesmo muito especial.

Qual foi o primeiro disco que fez de ti produtor? Qual foi a primeira vez que ouviste um disco e pensaste que era por aqui que querias ir?

O Endtroducing do DJ Shadow… Porque eu conseguia ouvir as colagens. Na altura em Inglaterra havia o Drum and Bass mas tinha um lado muito técnico que me aborrecia, enquanto aquela coisa da colagem, agarrava-me.

Estamos no teu estúdio, isto é o teu playground?

Sim sim, para mim não há nada mais emocionante que estar aqui e por exemplo, chegar aí uma vocalista e ficarmos aqui uma tarde e uma noite a construir uma coisa juntos.

Entre conversar para nos conhecermos, entre perder a vergonha e avançar com uma ideia. Essa dança é onde eu me sinto em casa, eu fazia isto todos os dias.

Quando lhe pergunto por uma peça no estúdio com que tenha uma relação afetiva…

Por um lado eu consigo começar e acabar um disco inteiro num laptop, não preciso de mais nada, sempre vi o laptop como a minha máquina de expressão máxima.

E quando viajo para sessões de estúdio, não levo teclados, não levo nada para que não me sinta “obrigado” a usar nenhum equipamento só porque o levei.

E vários softwares?

No início sim, porque os programas eram muito segmentados naquilo que faziam. Um Fruity Loops pra produzir bateria, drums… Um Sonic Foundry Acid para sequenciar a música… O SoundForge para editar e equalizar… Hoje já fazes tudo num DAW, (Digital Audio Workstation), seja um Ableton Live, seja um Logic.

Mas voltando a este estúdio e a uma peça que não dispenso.

Este compressor para mim é algo que eu meto em tudo, em voz, baixo… Até o nome é interessante, chama-se Distressor e é de uma marca chamada Empirical Labs. Ele é mono e tudo o que seja mono passa sempre por aqui para dar aquele aquecimentozinho. E depois vai pra dentro da máquina e já não o uso mais.

Neste disco fiz um processo um bocadinho diferente, um bocado de humanização do beat. Um pouco na escola do J Dilla e afins. No sentido em que se, por exemplo, tenho uma linha de baixo e guitarra e estão a tocar as duas em simultâneo e estão certas uma com a outra, eu acabo por mexer o meu beat no grid para ele bater certo com o que estava a ser tocado. De alguma forma nem todos os compassos são iguais, o que é um bocado pesadelo para um dj porque é mais complicado mas aqui dei primazia a esse lado, a que fosse o meu beat a ir de encontro ao que está a ser tocado,.

É curioso termos começado por aí porque o início para mim da produção deste Soma é eu a ir atrás dos meus próprios samples, do início da minha carreira a solo, um voltar atrás a trabalhar com músicos… Embora já tivesse algumas coisas gravadas, o início pra mim foi nos estúdios Namouche ali em Benfica, com 9 dos músicos mais importantes da minha cidade, e que são os arquitectos deste som de Lisboa, a improvisarem em cima de beats meus, live, num espírito muito de jam session,,,

Quase todas as bases do álbum vêm desses três dias de improvisação…”

Falei com o João Gomes (Cool Hip Noise/Spaceboys/Cais Sodré Funk Connection) e expliquei-lhe a ideia: 3 dias, cada dia com uma banda diferente,eu levo beats e todos a improvisar em cima dos beats que eu ia lançando e isso servir de base…”

No primeiro dia foi o João Gomes, Ivo Costa na percussão, o Mayo que é baixista do Paulo Flores e o guitarrista Danilo Lopes que toca nos Fogo Fogo com o João.

Depois, no segundo dia, João Gomes claro, o guitarrista Jorge Almeida que toca por exemplo com Slow J, o percussionista Iúri Oliveira e o baixo do Francisco Rebelo.

No terceiro dia em vez de uma banda optamos por chamar solistas, Jéssica Pina no trompete, Diogo Duque do jazz. E aí fizemos só eles a solar em cima do que já tínhamos gravado.

“Depois fechei-me aqui no estúdio e trabalhei nesse material todo. Transformar essas improvisações de 20 minutos em canções de 3 minutos. Depois quando abordei os vocalistas foi com os temas já bem mais avançados. Ao contrário do que costumo fazer, quando chamei os vocalistas já havia 6 meses de trabalho, já tinha tudo mais editado, já tinha frases de guitarra e momentos em cada tema. Musicalmente aquilo já estava com umas 3 layers em cima e 6 meses de trabalho antes mesmo de alguém abrir a boca”.

Está a ficar mais pop!

Acho que não, mas talvez haja uma série de texturas e nuances que as pessoas estão mais habituadas na música pop… Um baixo acústico, aquele som de guitarra … Mas eu não vejo a música em si nessa direcção.. E se pensarmos que a música eletrónica definiu a pop nos últimos anos, eu aqui até me vejo a afastar-me dessa ideia dos idm que andaram aí e que tomaram conta dos Calvin Harris e David Guetta.

Tenho aqui temas que têm 13 co-autores. O “Mood 11” com o June Freedom e o Dino Santiago por exemplo. È uma coisa um bocado idiota se eu tiver que licenciar aquilo para um anúncio ou um filme calham dois euros a cada um (risos). O importante é mostrar que todos eles participaram na construção do tema e o tema só ganha com isso.

O Atlas era, como o nome indica, mais global. O Soma é mais tuga?

Acho que sim, o Soma é de Lisboa sem dúvida. No Atlas os Buraka ainda estavam a acontecer e o Atlas era um exercício meu enquanto produtor que tinha coisas que não conseguia aplicar ao grupo e precisava de agarrar numa mochila e ir a 5 cidades e nessas 5 cidades vou explorar e gravar com artistas diferentes todos os dias.

No Soma, mas também no Nosso e no Obrigado, são discos que eu já construí na base do Branko ser um artista sozinho. Já não sou eu a pensar nos problemas e questões de um grupo mas sim eu a fazer o meu caminho, com a minha identidade o meu percurso e obviamente que essa identidade é marcada pelas pessoas que estão à minha volta e o meu universo aqui em Lisboa… E o Soma ainda mais porque juntas estes músicos todos com vocalistas que de alguma forma também estão relacionados, como o June Freedom, que embora seja um norte-americano e faça carreira nos Estados Unidos, é de origem cabo-verdiana. Ou uma Carla Prata que apesar de estar a fazer a sua carreira em Inglaterra, também é de origem angolana… Essas pontes estão a ser traçadas com artistas globais mas que sabem o que está a acontecer aqui em Lisboa.

Há temas no Soma a pedirem mesmo uma remistura, pensas nisso?

“Penso claro. Quer em remisturas , quer em produtores a fazerem versões de alguns temas, já tenho inclusivamente duas ou três programadas.

Do mesmo modo que saiu um Atlas Expanded com material que ficou de fora numa primeira edição, também aqui tenciono fazer o mesmo. Coisas tipo chamar uma pessoa pra meter um verso, desafiar um vocalista pra fazer algo com um tema. Esse tipo de dinâmica é algo que estou sempre à procura.

No Atlas havia uma forte componente audiovisual, quer ao vivo quer na série de programas de tv. No Soma podemos esperar o mesmo?

Sim sim. Eu tenho muito essa coisa de levar a vida real para o palco. De meter o público a ver momentos de estúdio, ver como os cantores gravaram as coisas. Eu tenho sempre essa pancada de gravar tudo um bocado.Tenho sempre umas GoPros a gravar em estúdio.

Nestes concertos levo também dois músicos que estiveram comigo na gravação para o palco. O Danilo Lopes e a Ola Mekelburg, ela está a fazer teclas e voz, o Danilo guitarra e voz.

E o Soma vai para a estrada, o que podemos esperar neste futuro próximo?

Agora tenho essas duas pessoas comigo porque este disco pedia isso. Vou andar por auditórios e alguns teatros por esse país fora porque comecei a fazer isso no Nosso. Levar a música eletrónica para fora dos clubes, para teatros onde as pessoas embora sentadas possam acompanhar a viagem que eu estou a fazer em palco, através do vídeo por exemplo. Vou à Casa das Artes de Vila Nova de Famalicão por exemplo, também a alguns festivais como Paredes de Coura e depois dia 28 de Novembro vou apresentar esta gente toda no Coliseu.

É uma celebração?

Para mim sim. Para quem, como eu, cresceu em Lisboa e a viver tantos momentos emblemáticos da música no Coliseu. Acho que nestes 20 anos de música, não houve uma semana em que eu não pensasse que queria chegar ao Coliseu. E agora vai acontecer. Vou meter isto tudo em palco.