Ana de Llor é uma artista portuguesa radicada em Londres há 9 anos. Depois de ter feito vários trabalhos na área da fotografia e da imagem, decidiu lutar pelo seu sonho e tem estudado e trabalhado pela música desde 2015. Lançou pela Bait Records o seu primeiro EP, “Not Your Holy Ghost”, no dia 9 de junho de 2023. Este mini-álbum une a música electrónica contemporânea à música tradicional portuguesa de uma forma muito camuflada e homogénea. Consegue ter uma batida de adufe distorcida e sintetizada, mascarada numa canção de dark-pop. Todas as suas músicas são muito cinematográficas e honram sempre o sagrado feminino. Após a sua última passagem por Portugal, em Março, voltou a atuar, em Lisboa, no MusicBox, para apresentar o seu EP de estreia.

A Parq esteve à conversa com Ana de Llor para conhecer melhor o seu trabalho. 

Texto por Tatá Seixo Garrucho

Quando começaste a fazer música? 

Ana: Essa pergunta é um bocado difícil para mim, porque eu acho que sempre fiz. Mas oficialmente, comecei há oito anos atrás. Estou em Londres há quase nove, e lá decidi estudar música, porque precisava da linguagem, de conhecer músicos e também de recuperar o tempo perdido. Eu cá [Portugal] estava a fazer fotografia e desenho, que são disciplinas artísticas que eu adoro, mas que não me preenchiam. 

Eu sempre cantei e como era uma cena que me preenchia bwé, tomei a decisão de ir estudar. Até porque não queria ser uma velhinha arrependida, então decidi fazer isto e foi a melhor decisão da minha vida. Eu nunca tive um sonho de ter nenhuma profissão específica, mas sempre me vi em palco, a expressar-me e a ser performer. Sempre sonhei com isto, desde pequena, mas isso acabava sempre por acontecer quando eu estava sozinha ou com pessoas mais próximas e sempre senti que isso era a coisa que me movia mais. 

Quando eu estava a fazer fotografia, eu gostava muito, mas conseguia perceber que as pessoas à minha volta davam muito mais do que eu, eu não era tão apaixonada como elas. E a música é a única coisa que me faz trabalhar bwé e ficar até altas horas da noite a trabalhar até quando estou super cansada, faz-me continuar e continuar a lutar sem nunca desistir. Eu era muito tímida, tinha muita vergonha de cantar à frente de pessoas e os meus colegas na altura foram super queridos e super supportive, ajudaram-me muito nesse sentido. Se não tivesse tido esta experiência não conseguiria hoje estar em palco. 

Quando é que tu conheces o teu produtor, Agon Branza

Quando eu estava a fazer fotografia, ainda aqui em Lisboa, o Gonçalo [Agon Branza] tinha uma banda e eu estava a fazer parte da equipa visual, era fotógrafa e fazia as press shots deles. Conheci-o nessa altura, mas não ficamos amigos. Mas mais tarde, em Londres ,na altura em que o seu companheiro fazia anos, fui convidada. A partir daí ficamos todes super amigues. 

Eu e o Branza começamos a andar muito juntes e houve uma altura em que eu fiquei a tomar conta da casa deles enquanto eles estavam fora, e eu gravo-me muito a cantar, para gravar algumas ideias, então fiz isso nas escadas deles. Depois, quando ele voltou, tínhamos estado a beber uns copos e eu ganhei coragem e mostrei-lhe a gravação. Ele chamou-me imensos nomes, disse que eu era mesmo parva de nao ter mostrado antes aquilo, e acabamos a ir para a casa dele e ele esteve a produzir para a gravação que eu lhe tinha mostrado, tipo as três da manhã. Foi assim que o nosso projeto de colaboração começou. Um passion project que temos andado a construir juntos. E é ele também que está comigo em palco. 

A sonoridade das tuas canções têm todas um caráter avant-garde, mas ao mesmo tempo têm uma forte influência da música folclore portuguesa. Isso foi uma ideia tua, dele, ou dos dois?

Foi uma ideia minha, porque tem que ver com as minhas raízes e com a ligação que eu tenho a certas partes de Portugal. Eu passei muitos verões a ir às aldeias de Monsanto e de Penamacor, na Beira Baixa, e esse folclore está muito presente na minha formação. Eu quando era pequena não lhe dava muito valor, como muitas crianças fazem, mas depois de me mudar para Londres – aquela coisa típica de só sentires falta quando não tens – comecei a ligar muito a essa parte da minha vida e a essa música. 

Liga-me principalmente à minha avó materna, porque estas músicas comovem-na bastante e houve uma vez, há uns anos atrás, que voltámos a aldeia, íamos no comboio e eu e ela estávamos a ouvir essas músicas. É daquelas coisas que não dá para explicar, mas só de ouvir comecei a chorar bwe. Nessa altura percebi a importância dessas músicas para a minha vida e que lhe eram intrínsecas. Entretanto comprei adufes, levei para Londres para usá-los em beats. Muitas vezes os nossos beats têm os ritmos típicos dos adufes, gravei vários samples e usamos os samples, o Gonçalo depois trabalha muito os sons. 

E é sempre uma mistura das coisas que tanto eu como ele ouvimos, porque temos gostos muito parecidos. Eu cresci a ouvir soundtracks de filmes super épicos, orquestras, a passar disso para o metal, mas hoje em dia ouço Arca, Rosalía, fui um concerto agora recentemente da Sevdaliza… 

A homenagem à imagem e arquétipos femininos nas tuas músicas é algo muito presente nas tuas canções. Gostarias de explicar alguns destes nomes e o porquê de serem uma influência ou inspiração? 

Ok, vou explicar uma por uma, porque todas têm um motivo. A Lilith foi a música que começou o projeto. Na altura estava a trabalhar com a Nathalie, que era uma produtora que estudou comigo. Essa primeira música começou com ela ainda quando estávamos a estudar juntas e só depois é que envolvemos o Agon. Ela era bastante ligada à mitologia, grega principalmente, e eu lembro-me de estarmos a falar de eu querer dar um nome feminino à música, porque era a única coisa que me fazia sentido. 

A história da Lilith é do Antigo Testamento, que pelos vistos era a mulher que existia antes da Eva e que estava no Paraíso com Adão. Eles eram ambes filhes de Deus, iguais, ela não nascia das costelas dele, e ela não lhe era obediente. Ele queixou-se a Deus, que não era obediente e que estavam sempre a discutir, então foi Lilith expulsa do Paraíso. E era essa a ideia da música, de não te calares. Era muito isso que eu estava a sentir quando a estava a escrever. E como o processo foi todo natural, eu não me sentei e escrevi um EP, isto demorou bwé de tempo, decidi que todas as músicas teriam um nome feminino, que ia ser dado antes ou depois. 

Depois escrevi a Penélope, que tem que ver com sexo e com o uso do sexo como ferramenta para superar uma situação ou para te ficares a conhecer ainda melhor. Esta música tem que ver com a mitologia grega, quando a Penélope fica sozinha enquanto Ulisses vai para a guerra durante 20 anos. Neste tempo, ela tem imensos pretendentes a fazer-lhe propostas, que rejeita. Ela inclusive começa a tecer uma manta e só quando acabasse de tecer a manta é que iria escolher outro pretendente, mas como ela está tão à espera dele, todas as noites ía   desfazendo um bocado da manta para ela nunca ficar feita. Eu decidi escrever uma música em que a Penélope estaria a divertir-se, having a good time e a ficar a conhecer-se a ela própria. A música começa em português, com uma melodia inspirada nas melodias tradicionais e também no palavreado e rituais: “vou lavar a minha pele com sal”, tens também aqui o luto. Depois, quando começa a parte em inglês, já passa para uma cena bwé mais sexual e de folia. 

A Malena é tirada de um filme italiano, em que a Monica Belluci é a mulher mais bonita da vila e é super demonizada por ser a mais bonita, acabando só por ser respeitada quando começa a não se arranjar tanto e a não se respeitar a si própria. A música é sobre recusar todos os padrões que a sociedade impõe, sobre o que é ser uma mulher, qual é o aspeto de uma mulher, e também sobre dizer: “fuck all that”. É sobre termos a liberdade de termos o aspeto que quisermos, não obedecermos a ninguém a não ser a nós própries. Por isso é que tens a cena “I know You wanna it, I know You do, For me to cover up and smile just for you”, aquele ideal da mulher modesta que sorri sem nunca se queixar de nada. 

Quando eu comecei a escrever a Malèna estava a falar com umas amigas sobre assédio e catcalling, começámos a partilhar experiências e todas partilhamos a ideia de que só éramos respeitadas se obedecêssemos as regras do patriarcado, se nos expressamos duma maneira, se nos vestíssemos de certa maneira. 

A Lourdes, que é o nome da minha avó, é a música mais pessoal para mim. O refrão diz “ a rua é minha”, eu escrevi esta música para aí em 20 minutos e quase não mudou, apenas para obedecer à métrica da canção. Tem muito que ver com uma pessoa abusiva ter desaparecido da minha vida e havia muitos sítios da minha vida que estavam associados a esta pessoa, que assim que ela deixou de fazer parte da minha vida, eu comecei a ter saudades desses sítios e reclamá-los de novo. Eu sentia que eu lhes pertencia e eles me pertenciam a mim, então assim que eu comecei a escrever “a rua é minha”, foi a primeira coisa que me veio à cabeça, e ficou assim. Para mim sempre foi uma música em que me afirmo muito, bato com o pé no chão e sinto que dá para se adequar a várias situações: seja de bullying, de não pertenceres a um espaço, ao um grupo ou até mesmo à sociedade, e tem que ver com sentires a ownership do teu espaço, que tens direito à tua vida e de vivê-la de forma completa, é um bocado uma música de orgulho. E tem o nome da minha avó porque eu sinto que vim quebrar um ciclo. Sinto que sou a geração que veio quebrar um ciclo de violência. 

A Ana foi a última música a ser gravada, estava a ter uma conversa com o Agon sobre o período que estava a passar, que era um período super transformativo, com terapia e apercebi-me que estas músicas eram ainda mais sobre mim do que aquilo que eu achava. Quando estávamos a gravar, eu improvisei bastante, e como estava a deixar esses sentimentos todos virem ao de cima, eu chorei imenso e isso ouve-se na gravação. Quando se ouve um choro na música é a sério (risos…). Então achei que fazia sentido meter o meu nome para acabar o ciclo do EP. 

Quanto tempo demorou este processo? 

Por causa da pandemia demorou cerca de três anos, porque o COVID muitas vezes impediu que nos encontrássemos. A Penélope foi feita remotamente, mas não toda. A maneira como toda a gente estava acabou por não permitir a ninguém desenvolver projetos. O videoclipe desta música foi todo feito nesta altura por mim, sozinha, em minha casa, andei a gravar durante um mês e meio e depois editei tudo. A parte da água foi feita na minha banheira, por exemplo. 

E o que é que as pessoas podem esperar do concerto de hoje? 

Este espetáculo, à semelhança do que fiz em Londres na launch party do meu EP, em julho, tem como objetivo criar um espaço queer e super seguro, de celebração, que cada vez mais faz sentido com o meu EP. Vamos ter a Rezmorah, que é uma performer incrível e que vai abrir o show, depois ainda temos uma apresentação da Paolle Berklyn, uma Drag Queen excelente, e vai ser uma celebração de corpos. Elas as duas vão ter uma performance um bocado focada nisso, e o meu show também vai ser uma celebração de corpos, do meu, do delas, e do de toda a gente. E sinto-me bwé orgulhosa de quando estou em palco nesse sentido, principalmente neste último espetáculo que fiz em Londres, acho que consegui criar essa atmosfera e que havia mesmo um ambiente de apoio e de queer joy na sala, e o feedback que tive fez-me levar às lágrimas, e acho que vai ter essa energia cá também