Com formação em arquitetura encontramos Martinho Pita na Lisbon by Design no momento em que apresentou pela primeira vez o seu projeto Vitrola, que tem por base formas cónicas em vidro soprado que pelas suas dimensões representam um grande desafio. O repto ultrapassado, marca uma viragem fundamental na sua trajetória agora concentrada na área do design
Texto por Francisco Vaz Fernandes para PARQ_79.pdf (parqmag.com)
Como foi o teu percurso?
Sou arquiteto de formação. Vivi 10 anos fora, estudei 5 anos em Edimburgo, vivi 1 ano e meio na Índia passando depois por Roterdão e Suécia, passagens que marcaram a minha experiência pessoal e profissional. Estudei e trabalhei arquitetura mas com uma componente virada para estratégias sociais, que desenvolvi na Índia, Suécia e aqui em Lisboa, na aldeia piscatória da Cova do Vapor.
A arquitetura pura e dura desmotiva-te ?
Sempre me entusiasmou a arquitetura, desde muito novo quando fazia casas com almofadas na sala, quando construía casas nas árvores com o meu pai e primos ou quando criava espaços habitáveis por entre uma montanha de mobília antiga empilhada no quarto de brinquedos, que a minha avó herdou da sua falecida tia. Tive a oportunidade de trabalhar com ateliers como os MRDV em Roterdão, os Aires Mateus e João Pedro Falcão de Campos em Portugal. Projetei uma casa mal saí da faculdade que, devido à crise de 2010, apenas ficou construída em 2018. Era bastante inexperiente quando a comecei a desenhar. Acompanhar a materialização desse projeto foi um processo bastante desafiante que beneficiou de correções importantes que a minha maior experiência e olhar mais amadurecido puderam trazer durante a construção. A arquitetura deu-me as fundações e alicerces para o que faço hoje em dia.
Mas então porquê essa viragem para o design?
Em 2010 voltei para Portugal. Vivíamos uma crise profunda, ateliers de arquitetura a fechar, muita gente a fugir do país em busca de estabilidade. Tive que tomar uma decisão, escolhi ficar e para isso senti que tinha que me reinventar.
Precisava de me aproximar da Natureza e decidi passar um período sabático em casa do meu pai, que é artista e vive no campo. Ele é uma pessoa que admiro bastante, no entanto, um pouco distante na minha vida. Vivi dos 5 aos 21 anos com os meus avós maternos, até que decidi sair da minha zona de conforto e aventurar-me por terras escocesas. Apesar de ser essencialmente um pintor com formação em Belas Artes, o meu pai é um autodidata que domina diversas técnicas e materiais. Pedi-lhe, então, que me ensinasse a trabalhar a madeira, mais especificamente ramos provenientes das podas das Azinheiras. Aprendi todo o processo, desde a poda, secagem e todo o trabalho de escultura e eletrificação.
Bichos foi o meu primeiro projeto de iluminação e nasceu da reconexão com o meu pai. Esse processo despertou a minha veia mais artística, que sempre viveu em mim, mas que fazia uma certa cerimónia em se manifestar. Comecei depois a explorar outros materiais como as palhas da pradaria, material com o qual criei toda uma linha de iluminação baseada no respeito pelo tempo.
Mais tarde decidi dar continuidade a um projeto que começou nos meus tempos de estudante em Edimburgo. Tudo começou quando fui acampar com o meu pai e um amigo dele, que para iluminar o espaço à noite, apontou uma lanterna a um garrafão de 5L de água. Fiquei fascinado com a solução, o efeito e a atmosfera que criava. No meu ultimo ano do curso escolhi “Arquitetura e as Artes”, onde estive inserido num coletivo de artistas e tive a oportunidade de criar alguns projetos e colaborações interessantes. Senti-me perfeitamente integrado nesse habitat e foi nessa altura que surgiram as minhas primeiras experiências com luz e água.
Mas como funcionava essa questão da luz e água agora relacionada com o vidro?
Para além das formas, era necessário encontrar o contentor perfeito para a mistura destes dois elementos, cheguei à conclusão que seria o vidro. Demorei dois anos a encontrar um mestre vidreiro disposto a produzir as minhas ideias. A Marinha Grande está virada maioritariamente para produções em série e processos repetitivos e muito pouco aberta a designers e artistas com as suas experimentações. Um forno de vidro necessita estar constantemente ligado para atingir a temperatura certa, e devido à boa vontade do proprietário, eu aproveito o período entre turnos, das 3 às 5 da manhã, para produzir as minhas peças. Em Portugal, o vidro de sopro manual é uma arte em vias de extinção e a geração mais nova não tem interesse em aprender.
Comecei por criar a coleção Gotas, peças que se moldam a diferentes superfícies, um canto, aresta ou plano, como uma gota de água. Das Gotas nasceu uma vontade enorme de explorar este material e ajudar a manter esta arte viva no nosso país. O meu processo é bastante experimental e gosto de esticar as formas e processos ao máximo para que o possível roce o impossível. Devido ao lado manual e imprevisível do processo, crio formas e dimensões que não sei se vão funcionar ou caber sequer na arca de arrefecimento. Tem tudo a ver com o improviso, com o momento.
Voltando um pouco mais atrás, então os primeiro vidros que fizeste eram pensados para ter água; Certo?
Sim, água e luz. Criei uns casquilhos que se podiam colocar no gargalo da peça e ilumina-la. Comecei por produzir casquilhos de cortiça, no entanto percebi com o tempo que a cortiça é um isolante térmico, ou seja acabava por queimar as lâmpadas. Criei então, com a ajuda de um designer de produto, casquilhos impressos em 3D mas devido ao calor dos LEDs começaram-se a desfazer passado algum tempo. Hoje em dia, com a experiência que fui adquirindo, melhorei os casquilhos para metal e funcionam lindamente. O meu trabalho foi melhorando com a experiência e é algo que faço questão de assumir e abraçar.
Mas então depois deixaste essa questão da água ou ainda é algo que exploras?
O meu trabalho divide-se em duas vertentes, catálogo e “tailor-made” com a criação de peças “bespoke”, específicas para determinado espaço ou projeto. Ao longo dos anos fui desenhando peças novas para diferentes clientes onde explorei o tema da água e luz. Em certos projetos o elemento água está presente sem necessariamente usar água.
Como chegaste então as formas cónicas destes projetos que apresentaste pela primeira vez no Lisbon by Design em Lisboa?
Durante muito tempo foquei-me nas formas orgânicas da Natureza, na perda de controlo no processo de formação das peças, a beleza da fluidez, do irregular. No entanto de há uns anos para cá comecei a explorar formas mais geométricas. A própria Natureza é composta por padrões, regularidades visíveis que se repetem criando formas orgânicas, os objetos físicos nada mais são que cópias imperfeitas. Assim, uma flor pode ser aproximadamente circular, mas nunca é um círculo perfeito. Não existe uma flor igual à outra. As minhas peças refletem esse mecanismo de criação. Mesmo idealizando formas geométricas, o processo manual com os seus movimentos imprevisíveis, acaba por lhes dar uma identidade única. O “erro” e imperfeição estão presentes em todos os processos do meu trabalho, dando-lhe singularidade e personalidade.
Inicialmente tinha uma proposta montada para a Lisbon by Design bastante diferente da que apresentei. Um mês e meio antes do evento começar, decidi mudar tudo! Tudo começou por uma pequena obsessão por duas peças cónicas, sentadas no meu atelier, que desenhei e decidi produzir como projeto experimental. Foram feitas em vidro de sopro manual, uma peça branca e outra preta. Essa obsessão cresceu e decidi criar toda uma coleção usando essa forma como módulo que se agarra a diferentes estruturas, como teto, parede, chão e mesa. O sistema de fixação é igual em todas elas, apenas variam as cores e as estruturas que as suportam.
Então era tudo completamente novo do que tinhas feito até então?
Sim completamente novo. Um salto de fé, ou como se diz em inglês, a “leap of faith”. Foi sem dúvida um parto muito difícil mas que no final compensou. Tornou-se um processo bastante desafiante dadas as dimensões da peça cónica, com 60 cm de diâmetro e 25 de altura. Para vidro soprado manualmente, são dimensões pesadas e incrivelmente difíceis de manejar, e que teimam em entrar na curta altura da porta da arca de arrefecimento. Antes de começar a produzir recebi a notícia que o meu mestre vidreiro tinha sido hospitalizado de urgência e tinha que parar 3 meses. Fiquei a saber que ele era a única pessoa na Marinha capaz de produzir estas peças e que a única solução acabou por ser arriscar e tentar produzir com os seus ajudantes. Escusado será dizer que correu bastante mal . Fui 6 vezes à Marinha Grande, fiz 3 moldes em madeira, produzi 15 peças para aproveitar apenas as 4 que precisava para apresentar na exposição.
Então o que mostraste foram os grandes sobreviventes? Como se chamam as peças? Têm algum nome?
Sim a maior parte delas não chegou a moldar o bico e estavam bastante deformadas por trás. Queria duas cores iguais na peça de teto e duas cores mais neutras nas peças de parede, mas quando olho para o que tinha, as tais sobreviventes, eram todas de cores e pesos diferentes. Não sabia o que fazer, sentei-me com a minha mulher no atelier e calmamente escolhemos, entre as sobreviventes, duas cores que casassem. Incrivelmente, as que faziam mais sentido usar, tinham também um peso muito semelhante.
É esta a beleza do meu trabalho, acreditar que tudo faz parte e que existe sempre um sentido.
O projeto chama-se Vitrola. A vitrola, ou gramofone, consiste nos primórdios do gira discos e é constituído por uma plataforma giratória, uma agulha para leitura das vibrações sonoras e um amplificador cónico em forma de corneta que servia para reproduzir som gravado utilizando um disco plano giratório.
O que apresentei na exposição foi toda uma sinfonia, não só da produção dos moldes, das peças, dos arranjos, das fixações e estruturas metálicas, mas também de todo esse processo caótico e suas frustrações, altos e baixos, erros e soluções criadas. O movimento circular está presente tanto nas peças finais como ao longo dos processos de produção. Toda essa música, todo esse fado ficou gravado em cada um dos cones que produzi, da mesma forma que uma música gravada num disco vinil.
Então as cores surgem ao acaso?
As cores são pensadas à priori e compradas em abalotes, barras de vidro cilíndricas com cor concentrada, que eu encomendo da Alemanha. Mais tarde na sessão de sopro, uma fatia desse abalote é aquecida e misturada com o vidro transparente que sai do forno. Existem cores opacas que são mais fechadas ou cores transparentes que criam um efeito degrade onde a cor vai esticando consoante a intensidade do sopro e respectiva expansão do vidro.
Mas se quiseres fazer duas com o mesmo tom, é complicado?
Conseguimos controlar o pantone e a quantidade de cor usada, no entanto, com exceção da cor preta e branca, não é possível controlar o seu efeito com exatidão.
A dificuldade aqui reside nas dimensões principalmente nas dimensões da peça, o que torna esse controle muito difícil, ou quase impossível. Eu prefiro assumir essa variável e torna-la uma mais valia.
Imagino que continues a explorar os teus cones em vidro já que conseguistes poucos, mas tens mais algum projeto em mente?
Estou a explorar novas técnicas de vidro como o fusing ou termo-moldagem que consiste na arte de fundir vidro. Ao contrário do vidro de sopro manual, começamos por usar planos de vidro colorido que podem ser formados, moldados, texturados ou mesmo dobrados no forno.