A Máquina não parou

Crónica

texto de António Barradas

Às vezes dizem-me que morreu um Ser Humano dos “que já não se fazem”. Assim, dito de forma perentória, sem apelo, para um agrave deixado cair para lugar nenhum onde se possa encontrar. Traçam-lhe o perfil, com o prólogo a resumir taxativamente tantos anos de vida. Não entra um coro a comprovar a cristandade por eles afiançada. Cria-se antes um pedestal para colocar quem já cá esteve. Misturam-se tempos verbais para enganar a fome de abraços da qual padecem. Fazem-se trinta por uma linha, no entanto, o casaco parece nunca ficar pronto. Também já não se fazem. Perderam-se com eles, dizem-me com soluços.

Parecem cravar a fogo, no ferro que lhes ficou no coração. Sabe-lhes melhor dizer em voz alta e estende-se assim um tapete mais largo à morte. Ou a essa madrasta falta de alguém, patologia tão mais cruel do que morrer. Agilizam-se as palavras não ditas, desviam-se as pilhas de burocracias que os impediram de estar presentes e acolchoam-se as desavenças sem resposta. Tudo serve para os aproximar desse Ser Humano com a vida em maiúsculas que não merecia tão minúscula despedida.

Parecem cismar na ideia. “Já não se fazem”. Acabou. Vem a finitude baralhar os nós de marinheiro feitos na tempestade de emoções do nosso alto-mar sensitivo. É um estatuir de amor ao que já não volta. A máquina encarregada de os fazer, parou. Vociferam. Ou estragou-se pelo saudosismo impulsionado de saudades e calcorreado por lágrimas que saram feridas abertas.

Quando paramos de desvalorizar quem cá fica? Porque valem tão pouco as pessoas que vão perdurando ao nosso lado? Não seremos nós a pedra na engrenagem desta máquina estagnada de seres iluminados?

O vazio não é mais do que uma receita de saudades. São ondas de planos desfeitos, a embrulhar-nos nas reminiscências mitológicas de quem já não se faz. A máquina não parou. O motor engata a cada minuto aproveitado com quem se posiciona ao nosso lado. Refazem-se trapos de bonecos há muito atirados para o lado. Refazem-nos o lado mais dorido com abraços e juras sem promessas. Refazemo-nos, porque haverá sempre alguém a ajudar-nos a amassar este pão de esperança.

Imagens do filme High-Life (2018) de Claire Denis

Texto de Antonio Barradas para