António Faria
Um artista que, no seu atelier, tenha como companhia, uma cadeira do Eero Aarnio, como a Ball Chair, ou um candeeiro Arc Lamp de Achille Castiglioni, ou ainda uma cadeira Tulip, do designer Saarinen, não pode ser um artista vulgar. Sobretudo se, justamente muito próximo do seu processo de trabalho, se encontrarem peças de design. E as referências não se ficam por aqui. Multiplicam-se. Algures um candeeiro de Tom Dixon ilumina um móvel de Luísa Coder. A própria mesa, onde o artista faz os seus desenhos, é uma peça desta designer.
António Faria realiza um desenho evocando uma trama difusa de ramos que se desenvolvem, de forma plana, na superfície da folha. Um labirinto que se desenha, mas sem perder de vista a noção contemporânea de estrutura. Por esse motivo fomos entrevistá-lo, para melhor compreendermos o seu mundo e entendermos a forma gulosa com que nos deliciamos, em prazeres múltiplos de fruição, simultaneamente, com os seus desenhos, com o seu design gráfico, e ainda com os objetos de design que povoam a sua casa soalheira.
PARQ: Qual é a intenção de aplicar motivos vegetalistas nos teus desenhos?
António Faria (AF): Não há uma intenção, há uma necessidade. E a necessidade é de passar uma ideia de melancolia e claustrofobia.
PARQ: Apesar dos motivos que aludem a um bosque, a um labirinto. Não é um fim em si mesmo?
AF: Não. Não me interessa nada o desenho no sentido naturalista, da representação. É utilizar esta forma, para dizer outra coisa.
PARQ: Quem olha para os teus desenhos fica intrigado pelo modo como os ligas.
AF: Há desenhos que são feitos para se ligarem uns aos outros. Mas é um só desenho, tem é a situação de ser composto por partes. Quando a intenção e a necessidade é a mesma obviamente que eles vão criando pontos de ligação entre si. Mas não tenho essa intenção de quase criar um cenário.
PARQ: Fala-nos dessas grandes escalas. Houve uma maior intencionalidade de ligação entre os elementos?
AF: Tem que haver. Porque a minha preocupação é fazer um só desenho. Ele é feito por partes mas é um só desenho. É só uma ideia. As escalas têm a ver com a minha necessidade de eu me posicionar, enquanto pessoa, no próprio espaço. Fazer uma escala em que o espaço do desenho tome conta de mim. Me envolva no próprio desenho.
PARQ: E que pode estar ligada a essa questão da claustrofobia?
AF: Sim. Gosto da ideia de imensidão. Do desenho ser maior que nós. Do desenho ser capaz de nos envolver ou de nos fazer sentir aquilo que queremos representar.
PARQ: Porquê o amarelo?
AF: As cores são algo estranho para mim. São uma coisa emocional. Têm uma vibração de luz que me interessa. Desta vez foi o amarelo. Não há nenhuma carga simbólica. O que me interessa é a vibração luminosa que a cor me provoca. De qualquer maneira também me pareceu, inicialmente, despropositado, e isso foi o que me agarrou mais à ideia de usar o amarelo.
PARQ: No fundo, sair um pouco da zona de conforto e daquele fundo maioritariamente branco em contraste com o negro.
AF: Depois há um contraste que me interessa muito, a vibração do amarelo com o preto, é uma coisa que funciona muito bem graficamente, para mim. Aprendi que era o maior contraste possível para a leitura das informações. Coisas de sinalética. Muitas vezes apresentam as cores amarelo e preto.
PARQ: Esse poderá ser o teu lado de gráfico a falar. Talvez a tua experiência enquanto designer te tenha levado a selecionar essas cores, e a concluir que o amarelo tinha essa força.
AF: Sim, essa vibração. Mas o engraçado é que nem toda a gente vê o amarelo, e isso acho muito interessante. É óbvio que são amarelos. Mas já aconteceu pessoas virem-me dizer “ah, a tua série verde”. Porque de facto o amarelo em proximidade com o negro provoca uma sensação de verde. Aquele verde azeitona é feito a partir do amarelo e do preto. Há pessoas que só veem o verde. Eu acho que as pessoas deixam-se levar pela representação da natureza. Estão a ver o lado naturalista.
PARQ: Falamos agora nesta relação dos objetos de design com o espaço onde trabalhas. Eles estão muito presentes no teu espaço de criação.
AF: Eu sou um apaixonado por design. Sou apaixonado pela forma. É uma coisa muito importante para mim. E não deixa de ser uma forma de desenhar. É um outro desenho. São coisas que me agradam, que gosto. Que eu gosto de ter
PARQ: Os objetos são importantes.
AF: São. Eu raramente consigo sobreviver com coisas que não gosto por perto. Não sou capaz de ter em casa um objeto de que não gosto. É difícil eu ter uma cadeira que ache feia. Não consigo olhar para as coisas.
PARQ: O teu espaço é o teu descanso.
AF: Sim. Numa conversa que tive há muitos anos, sobre a ideia de conforto, eu e uma pessoa amiga, encontravamo-nos a discutir essa questão dos objectos que são estéticos e desconfortáveis. Isso para mim não existe, eu prefiro ter uma cadeira que me faça magoar as costas, e que seja agradável ao olhar, do que uma que seja confortável, mas que me fira os olhos. Para mim o conforto é visual. De facto, a pessoa com quem eu estava a falar, numa dessas discussões disse: “Engraçado, eu nunca pensei nisso. Eu também sou essa pessoa”. E apesar dessa pessoa assumir isso, o nosso conforto visual era o oposto, mas a ideia era a mesma. O que nos interessou, na nossa conversa, foi essa ideia de conforto visual.
PARQ: Mas, existe um conforto visual que é espontâneo, digamos, e outro que é educado. E é isso que é curioso nessa relação que se estabelece entre os objectos e o teu trabalho, enquanto desenhas. Trabalhas na companhia, digamos assim, de objetos desenhados por designers de grande renome.
AF: Sim, eu escolho os objetos e sei que histórias estão por detrás deles, e quem são os autores.
PARQ: Outra característica em ti, que considero peculiar, e que não vejo em muitos artistas, é justamente esse interesse pelos objetos, no teu desenho.
AF: Para mim é tudo desenho.
PARQ: Tens uma perspetiva horizontal do desenho. No sentido do desenho em todas as vertentes disciplinares.
AF: Sim, no sentido em que posso gostar de roupa de estilistas, embora não as use. Mas gosto de apreciar, pelo seu desenho.
PARQ: Pergunto se a mesa onde está o desenho que estás a desenvolver, neste momento, enquanto conversamos, é de Luísa Coder.
AF: Sim. Ela fez uma edição limitada destas mesas, e com a escala que a pessoa quiser. Esta é única. Existem três, e são todas diferentes. Esta mesa foi pensada para ser uma mesa multidisciplinar, e para pessoas que não queriam ter uma tábua de engomar. Eu não passo a ferro em cima da mesa. Eu não passo a ferro em lado nenhum, mas é uma bela mesa para trabalhar. Tem uma superfície lisa. Não deixa registos nenhuns no desenho. Fácil de limpar.
PARQ: Fala-me dos candeeiros, que também se encontram próximo da mesa.
AF: Não são originais. Gosto muito de design dos anos 60.
PARQ: E gostas de contrastes?
AF: Sim, gosto sobretudo de contrastes e considerei que resultaria num bom equilíbrio com a mesa.
PARQ: E os candeeiros ainda têm um apontamento a cor laranja.
AF: Houve uma fase em que eu estava obcecado com a cor laranja. Em tudo colocava essa cor. Agora já não se nota na casa. Sobraram algumas peças. E achava muita graça ao Marc Newson que partilhava essa obsessão pelo laranja. Eu procurei, durante muito tempo, uma réplica em miniatura do carro desenhado por ele para a Ford, que se chamava 021, e que é o número do pantone cor de laranja. Vi o carro ao vivo no museu de design em Londres, mas não era cor de laranja, era verde. Muitos trabalhos gráficos que realizei, até as pessoas começarem a chamar-me à atenção eram feitos a laranja.
PARQ: E as cadeiras onde estamos sentados, são de quem?
AF: São da Luísa Coder, também.
PARQ: E organizas jantares nesta mesa?
AF: Sim, retiro os desenhos, e cubro-a com uma folha de papel nova, intacta. Depois do jantar observo as manchas e desenhos que foram deixados, pela refeição, na folha.
PARQ: Estava a olhar para este monte de desenhos que repousam sobre a mesa. Estão tão bem arrumados que parecem mil folhas. São tantos.
AF: Claramente é um mil folhas.
Texto por Carla Carbone
Fotografia Cristina Gameiro