Mucho Flow ‘22

Texto: Tatá Seixo Garrucho

Fotografias: João Octávio Peixoto

Em 2012, Guimarães tornava-se uma das Capitais Europeias da Cultura e, dez anos mais tarde, ainda podemos usufruir dos incentivos dados e das infraestruturas anteriormente criadas. A Revolve, promotora, agência e editora vimanarense, escolheu há nove anos atrás esta cidade para acolher o seu festival.

Mucho Flow, no passado dia 4 de novembro, abria as portas para a sua nona edição com a atuação de Sofia Birch no Centro Internacional das Artes, onde estava em exibição uma exposição do artista que dá nome ao Centro, José de Guimarães. Ao lado da exposição, encontrávamos a Black Box, onde Birch entra em palco com um barrete de veludo, feito por Pernille Lehnert. A primeira impressão transmite-nos conforto, que procura manter nas notas que ia tecendo com um dos sintetizadores. Tinha 5 máquinas em palco, vários shakers, sinos de sementes Pagi e um Koshi, com os quais ia criando um espaço seguro nos imaginários da audiência. Com panorâmicas, marimbas e sonoridades naturais, remetia-nos para um lugar de meditação. A fauna e a flora estavam presentes em gravações de sons de árvores, água, aves e insetos. O som dos shakers, o Koshi juntos com as melodias dos sintetizadores em diferentes camadas, guiavam-nos para diferentes dimensões. No microfone que se encontrava do lado esquerdo da mesa central, onde tinha os sintetizadores, cantou uma música. A artista não apresentou o seu mais recente álbum, “Holotropica”, contudo, cria uma ambiência idêntica à que procura criar no seu último trabalho: um ecossistema capaz de conectar os nossos microcosmos ao macrocosmos, onde conseguimos sentir a nossa própria leveza.

No Teatro Jordōes, George Riley abria a pista com o seu R&B/Soul, misturado com instrumentais de UK garage, Jungle e Bass. Acompanhada apenas por uma SP 404, um controlador para a voz e dois microfones, George Riley vai hipnotizando a pista do Teatro Jordões com a sua voz que, comparando com a versão de estúdio, ao vivo, é ainda mais doce. Este ano, a artista lançou já quatro trabalhos na sua página do Bandcamp, tendo sido a primeira “interest rates, a tape”, onde encontramos a música com que iniciou o espetáculo: “I, how are you? (..)”. Esta primeira música, numa levada mais jazzy, preenchida pela sonoridade de um teclado Rhodes, com uma batida bastante súbtil, deixando a voz de Riley protagonizar a performance.A sua voz tem bastante soul e groove e vai cativando o público ao longo das músicas. Trocava de instrumental para instrumental, escolhendo a música a dedo na sua 404. Viajando entre batidas mais Hip Hop, como “Jealousy”, (um dos singles de “Running In Waves”, a última mixtape que lançou), ou outras com uma pegada mais R&B, como Sacrifice”,  num andamento mais acelerado e preenchido com breaks, vai aquecendo a audiência com “fantasy”. Antes de cantar a música “money”, George interage com o público e, reconhecendo que poucas pessoas conheciam o seu repertório e que as que conheciam estavam ainda tímidas para o cantar, faz um pequeno jogo: “when I say “I want money” you say: “I need it”; and then on the second “I want money”, you say “give it to me”, o publico lentamente ia aderindo mas claramente sentia-se mais confortável apenas a dançar.

George Riley

Slauson Malone 1 apresentou-se de seguida com uma guitarra acústica, um computador e a companhia de Nicholas John no violoncelo. Vestia uma camisa branca, uma camisola de alças branca por baixo, umas calças pretas com brilhantes que combinavam com o cinto repleto de brilhantes e o colar prateado, nos pés calçava umas botas de salto alto. Com a voz modificada, ia brincando com gravações. O violoncelista vestia um fato escuro e os pés estavam descalços. Nesta performance, desenhada e interpretada por Jasper Marsalis, o autor mostra que o rap pode ganhar várias dimensões.Jasper salta para o público dizendo “what time is it?” e ouve-se o tic tac de um relógio antigo. O violoncelista que tocava antes notas perceptíveis agora faz apenas barulhos estridentes. Entre pizzicatos, ricochete com as cerdas ou battuto col legno (batendo com o cabo nas cordas), o violoncelista acompanhava o mood da performance. O vocalista cai propositadamente em cima dos subs (as colunas que estavam na frente do público). Continua a performance, voltado a tocar guitarra, mas desta vez toca em pizzicato, como se estivesse a tocar um contrabaixo. Samples e voz distorcida novamente. É uma intensa viagem à volta das suas emoções enquanto homem negro e queer. Regressa ao ritmo boom bap, com laivos de Lo-Fi. O violoncelista passa-lhe o arco e ele toca guitarra com este. Voltam a trocar e tocam a última música. 

O concerto seguinte foi o de Marina Herlop, que se apresentou vestida com um catsuit lilás, uma jóia que unia as orelhas e a cana do nariz, sugerindo a armadura de uma guerreira. Tinha ainda o cabelo entrançado, que se enrolava à volta do pescoço. Num teclado Alessis, vai entoando as primeiras notas, tocando nuns drum pads da Roland (que eram ora sub bass, ora kicks, ora texturas rítmicas) e cantando em simultâneo. No chão, de um computador, iam saindo as linhas de baixo e as back vocals. A sua formação clássica é notória, principalmente quando toca teclado e canta. O vibrato, espontaneamente criado pela sua voz, ajudava a criar a atmosfera mágica que caracteriza o álbum que apresentou, “Pripyat”, editado pela editora discográfica sediada em Berlim, PAN.

Slauson Malone 1

Acabado o concerto, seguimos para o Centro Cultural Vila Flor, onde Slikback, após ter trocado o slot com Aya por consequência de atrasos voos, fez um DJ set de trap, techno e bass, usando muitas camadas de white noise e distorção. O produtor keniano deixou o público do CCVF a suar e com água na boca por mais rave. 

No Centro de Artes e Espetáculos São Mamede, Poly Chain abriu a pista com um live de techno e acid, controlando várias máquinas diferentes e ainda com o auxílio do computador. Após este concerto, Aya finalmente consegue subir ao palco. Lamentando o atraso do voo, apresentou-se de quispo e óculos de sol. Inicia o seu live seguindo o mesmo alinhamento do concerto dado no MUPA 22, retirando a meio do concerto o quispo e expondo o seu místico vestido. Desceu também para o público na “OoB Prosthesis” e acabou num ritmo mais acelerado.

De seguida, o duo berlinense Schwefelgelb fez um live de techno industrial e electroclash. O DJ OTSOA fechou a noite com um DJ set carregado de acid, electro e techno, acabando com o clássico “It feels so good” de Sonique.

Slikback

No dia seguinte, regressamos à Black Box do CIAJG, onde Luís Fernandes apresenta um live bastante intimista, com muito noise, ambient e drone. Depois de Luís, Fauzia subiu ao palco com um computador e uma violoncelista, Klara. A artista londrina conhecida pelos seus DJs sets e produção de drum and bass e jungle aventurou-se na produção de ambient com um toque de RnB. Na sala escura, apenas com uma luz vermelha alaranjada, vai cantando em instrumentais quase sem batida e quando esta existe é muito calma. A violoncelista ia tocando ora com o arco ora em pizzicato. A artista ainda não publicou nenhum álbum, contudo, tem algumas músicas disponíveis na sua página do Youtube e do Soundcloud, onde podemos ouvir  “It’s ok”, com a qual acabou o concerto.

Rainy Miller abriu o palco da cave do Teatro Jordões com o seu drill e rap experimental, carregado de auto-tune. Entre berros, murmúrios e lamentos, vivemos uma emocionante e intensa performance. Moin deram o concerto seguinte, onde pudemos ver post-punk a ser tocado com uma MPC. Os Ill considered fecharam os concertos neste palco, onde um baterista, um baixista e um saxofonista levaram a plateia ao êxtase e ao único mosh pit do Mucho Flow.

Jockstrap, no CCVF, trouxeram o pop londrino até Guimarães, num intenso concerto onde Taylor Skye tocava teclas, máquinas de ritmo e ainda manipulava a voz de Georgia Ellery, que tocou também guitarra e violino. Blackhaine ocupou o palco no slot seguinte e provou que é um homem da performance. O músico e coreógrafo demonstrou a sua dramaticidade através da poesia cantada e do movimento. Desceu para junto da plateia, andando no meio desta a cantar. Volta a subir para cima do palco e acaba este espetáculo de drill experimental, saindo ele, Rainy Miller e o DJ, que esteve durante o concerto todo a tocar de costas viradas para o público.

Mais uma edição em que o Mucho Flow conseguiu trazer um cartaz eclético, levando a Guimarães o melhor da música contemporânea, desde o jazz à música de dança mais desconstruída. Tanto se pôde deitar, relaxar e meditar ao som de concertos ambient, como pular e fazer mosh pit em concertos de eletrónica e, para minha surpresa, de jazz. Houve ainda momentos mais contemplativos, por exemplo, no concerto de Marina Herlop, onde a artista conseguiu hipnotizar a plateia e levar as pessoas para o seu universo. Aguardamos ansiosamente pelo cartaz de 2023.

Texto de Tatá Seixo Garrucho para PARQ_77.pdf (parqmag.com)