Louise Bourgeois em Serralves
Texto de Francisco Vaz Fernandes
Do ponto de vista tático das cidades, oferecer uma retrospetiva de Louise Bourgeois (Paris, 1911, Nova Iorque, 2010 ) é sem dúvida um grande trunfo, para o Porto e para Serralves que se permite a equiparar-se aos palcos de maior prestígio. Esta competição entre instituições culturais centrada muitas vezes no programa de Verão é cada vez mais, uma maior evidência, pensada de forma estratégica, na maior parte das vezes a partir do poder político e cultural da cidade ou do país. Tal como acontece com qualquer grande evento cultural, este implica avultados investimentos e esta exposição, não é exceção. Conta com a produção de mais dois museus, o Glenstone Museum, no estado de Maryland nos Estados Unidos, em colaboração com The Easton Foundation, em Nova Iorque, e o Voorlinden Museum & Gardens, Wassenaar na Holanda. A directora do Glenstone Museum, Emily Wei Rales é a curadora de Louise Bourgeois, To Unravel a Torment (deslaçar uma tormenta ) que podemos ver na Fundação de Serralves até 19 de setembro.
A exposição reúne peças que vão desde os anos 40, período que coincide com a fase em que a artista se radica em Nova Iorque deixando para trás o ambiente cultural de avant-garde parisiense que a formara e que é de certa forma herdeira direta. Apesar de manter uma produção ativa o meio cultural novo iorquino teve dificuldade em reconhecer o valor do seu trabalho e só de forma tardia o fez. Ou seja, até aos anos 90, quando tinha mais de 60 anos a obra de Louise Bourgeois era quase desconhecida do grande público e mesmo da imprensa especializada e só a partir dessa altura é que ganha uma audiência internacional, tornando-a numa das artistas mais influentes na passagem para o novo milénio.
De certa forma é compreensível a desatenção da crítica dos Estados Unidos, uma vez que o pós-guerra reforçou um modelo de sociedade americana assente na produção de massas, que reclamava eficácia e simplificação dos meios para atingir objetivos. Esta mentalidade refletia-se na valorização de uma arte igualmente objetiva, mecânica, serial, minimal nos seus processos de produção. Pretendia-se que a carga autoral do artista fosse idealmente mínima e, nesse ponto, como em tudo o resto, era o contrário da produção de Louise Bourgeois, que arrastava a sua vida pessoal para o centro da sua produção dentro de parâmetros explorados pelo universo Dada e Surrealista parisiense. Toda a sua obra é, pois, baseada em elementos subjetivos, e formalmente, resulta sempre de uma expressividade manual que confere ao seu trabalho uma grande organicidade.
A sua obra tem uma componente narrativa forte tendo por base as suas memórias que, segunda a artista, são um lugar sombrio de ordem e desordem mas que se tornam o motor e centro da sua produção artística. As suas memórias aparecem descritas e representadas de forma simbólica e referem-se a experiências traumáticas e íntimas. Tornam-se num enredo que participa na constituição da sua própria identidade da artista. Ou seja, todas as interrogações sobre si, enquanto artista, enquanto mãe, enquanto mulher saltam amplamente para o centro da sua obra. Objetos que coleciona, reorganizados e expostos participam na construção de uma linguagem simbólica, criada pela artista, mas que, em geral, referem-se a situações de agressão e proteção.
Das muitas perspetivas por onde se pode abordar a obra de Bourgeois , uma das que foi colocada com maior relevo, foi em torno do género feminino em oposição ao masculino. Esta temática despertaria o interesse das feministas americanas, nos anos 90. Foram as primeiras que colocaram a sua obra em relevo sublinhando, no essencial, todo o processo de construção de identidade que atravessa a obra da artista. Ser mulher, ser artista eram questões realçadas que orientavam o seu processo construtivo. Acabavam por inserir-se em temáticas em torno das identidades e dos processos de diferenciação, discursos que apaixonavam na época os meios artísticos americanos.
Apesar da sua considerável idade na altura, o reconhecimento público, permitiu-lhe acelerar a sua produção e explorar com maior densidade aspetos narrativos convocando os seus medos e a sua memória traumática. Numa época caída nos dilemas da representação, que questionou a faculdade e legitimidade de um individuo falar do outro, a sua capacidade de falar de si, tornou-se então uma referência para as gerações seguintes. As suas dores traziam temas que ampliados falavam de todos nós. Como refere, as suas memórias são, no essencial, documentos de onde retira emoções, mais do que factos, tal como eles foram. Mais que um sentido de verdade, a artista procura extrair das suas memórias um sentimento de emancipação e alcançar uma liberdade criativa.
É nesta fase que a artista, contando com espaços expositivos e budgets mais amplos, desenvolve as suas peças de maior dimensão que implicam a ideia de instalação. Entre as mais importantes estão as suas “cells” construídas, em geral, por materiais usados, como podem ser portas, janelas elementos que também tiveram as suas histórias, que transportam igualmente uma carga emocional. Serralves apresenta três dessas peças. Todas elas apresentam espaços circunscritos, que têm implícito a ideia de célula, de clausura. Definem um espaço circular fechado a partir do qual o espetador apenas pode espreitar para o seu interior. Neles cria-se uma espécie de palco de teatro do mundo, onde se colocam objetos que são catalisadores das suas memórias. Muito frequentemente são incluídas mensagens, escritas ou bordadas que conduzem o espetador para um ato inquisitivo sobre si próprio. São, em geral, peças com uma grande carga dramática, inquietantes, tal como pode ser uma guilhotina que paira sobre a “cell Choisy”, uma das obras expostas, aquela onde é mais evidente a referência à memória da sua casa de infância. Em geral, as suas obras não se fecham numa interpretação simples e única, estão abertas à especulação e à interpretação do observador.
A série das Aranhas que começa também a ser produzida com mais constância a partir dos anos 90, é também um dos temas recorrentes que ganham maior relevo no conjunto de peças selecionadas para Serralves. Aparece em desenhos dos anos 40, em instalações dos anos 90 e chegam praticamente à primeira década do novo milénio. A peça que coroa a exposição é uma das suas aranhas gigantes que paira sobre uma das artérias principais do Jardim da Casa de Serralves. Intitulada Maman, só por si diria muito sobre a totalidade da obra de Louise Bourgeois. Ela representa obviamente uma ameaça, desperta o medo mas está aberta a uma dualidade de perspetivas. O medo que desperta em alguns pode representar o sentimento de proteção para outros. Essa dualidade e trânsito de sentimentos é muito presente na sua obra que explorou muito a questão dos opostos que além de serem vistos como antagónicos podiam ser simultaneamente complementares.
Texto de Francisco Vaz Fernandes para a edição #70 da revista Parq: Junho 2021 PARQ_70.pdf (parqmag.com)