texto por Miguel Rodrigues

“Midsommar – O Ritual”, o aclamado filme de folk horror dirigido por Ari Aster, lançado em 2019, acompanha a relação conturbada de Dani (interpretada por Florence Pugh) e Christian (Jack Reynor), através de uma atmosfera macabra, inquietante e catártica. Após descobrir que a irmã e os pais falecerem, Dani entra numa espiral de luto e busca por equilíbrio. Christian tem dificuldade em demonstrar qualquer afeto ou empatia, deixando-a ainda mais isolada e angustiada. Ao longo da narrativa, os amigos de Christian também evitam estar numa posição de vulnerabilidade emocional, representando modelos pouco saudáveis de masculinidade. Um dos amigos, Mark (Will Poulter), acredita que a dor de Dani é uma forma de abuso emocional sobre Christian, realçando que este não merece lidar com os traumas da namorada. Sugere também que ele termine com Dani, para que possa encontrar “uma rapariga que realmente goste de sexo”.

“Midsommar – O Ritual”, de Ari Aster, 2019

Há “regras” que definem o que os homens devem vestir, como se devem comportar e que emoções devem expressar. O problema não está na ideia de masculinidade ou no género masculino, mas no conjunto de ideais tóxicos e destrutivos que ditam como um homem deve ser.

A masculinidade tóxica – padrão enraizado no nosso meio cultual e amplamente aceite e empoderado pela sociedade – encoraja, muitas vezes, os homens a reprimir emoções, a subordinar as mulheres, a ser resiliente, heterossexual, viril, duro, dominante e competitivo. Aqueles que não conseguem suprimir estas exigências são muitas vezes menosprezados. “[A masculinidade tóxica] é o ideal cultural da masculinidade, onde a força é tudo enquanto as emoções são uma fraqueza; onde o sexo e a brutalidade são padrões pelos quais os homens são medidos, enquanto os traços supostamente “femininos” implicam que o estatuto de “homem” possa ser removido”, realça o Good Men Project. Muitos homens não comunicam o que sentem, e evitam pedir ajuda para resolver os seus problemas, com medo de serem estigmatizados.

“Midsommar – O Ritual”, de Ari Aster, 2019

No dia 10 de outubro assinala-se o Dia Mundial da Saúde Mental. A Organização Mundial da Saúde (OMS) prevê que todos os anos se suicidem 800 mil pessoas, o que corresponde a um suicídio a cada 40 segundos. Estima-se que cerca de 90% das pessoas que morrem de suicídio têm algum tipo de perturbação mental. Segundo dados do INE – Instituto Nacional de Estatística, a taxa de suicídio em Portugal é mais elevada nos homens. Em 2017, registaram-se em Portugal 1061 mortes por suicídio, o que corresponde a 70% de homens.

O estudo “Masculinity and suicidal thinking”, realizado por uma equipa de investigadores da Universidade de Melbourne, em 2016, concluiu que os homens que se identificam com um elemento particular da masculinidade dominante – ser autossuficiente – poderiam estar em risco de terem pensamentos suicidas. Expressões negativas como «um homem não chora» ou «não sejas maricas» são muitas vezes aceites e difundias por uma grande parte da sociedade. Procurar ajuda, para muitos indivíduos, ainda é sinónimo de humilhação e um ataque à virilidade. Estima-se que os homens evitam entrar em contato com profissionais da área para pedir ajuda, sejam psicólogos ou psiquiatras. Muitas vezes, até mesmo na dentro do grupo de amigos tentam não demonstrar fragilidade.

A definição de masculinidade varia de acordo com fatores como a educação, a orientação sexual, a religião, o território de origem, o privilégio e o ambiente socioeconómico de cada indivíduo. Por isso mesmo, não devemos esquecer que existem, de facto, várias (e válidas!) masculinidades. Não podemos analisar esse tema sem pensar de forma interseccional: há homens negros, brancos, gay, bissexuais, cis, trans e tantos outros. Também há pessoas que não se identificam com a divisão binária homem-mulher e não devem ser reduzidas aos modelos da heternormatividade e da cultura do patriarcado.

A masculinidade tóxica desperta preconceitos e abre caminho a comportamentos violentos, racistas, machistas, homofóbicos, transfóbicos, sexistas e outros. Neste sentido, a representatividade é fundamental para redefinir parâmetros e extravasar a imagem do que define “um homem a sério”. Um homem que use uma saia ou um vestido – como o ator Billy Porter, conhecido pela serie “Pose”, na red carpet dos Oscars em 2019 – pode causar desconforto e ser ridicularizado, uma vez que utiliza algo do “imaginário feminino”. Quando determinadas normas tradicionais são quebradas, a ostracização surge como punição. Esta situação exemplifica um problema atual que a nossa sociedade enfrenta: comparar um homem a uma mulher representa um ataque à virilidade e um insulto extremo.

A imposição de estereótipos e normas de género é perpetuada desde a educação, tendo implicações para as raparigas e rapazes. Geralmente, muitos meninos são treinados para gostar de brinquedos como camiões, armas ou bolas de futebole não de maquilhagem, saltos altos ou barbies. O estudo “It Begins at 10: How Gender Expectations Shape Early Adolescence Around the World”, publicado no Journal of Adolescent Heath, em 2017, indica que os estereótipos de género causam danos e contribuem para problemas de saúde mental. “Devido a estas normas hegemónicas, os rapazes são vítimas de violência física em muito maior grau do que as raparigas, morrem mais frequentemente de lesões não intencionais e são mais propensos ao abuso de substâncias e ao suicídio”, revela a publicação.

Conduzir carros desportivos, ter barba e demonstrar um incontrolável desejo sexual – ou outras características tradicionais associadas a este género – não têm de ser regras obrigatórias para definir um homem. Não há um modelo universal ou um conjunto de mandamentos restritos a seguir. Um homem também pode usar uma camisola cor-de-rosa com a imagem dos teletubbies e chorar ao som de um álbum da Adele sem que isso seja uma ofensa à sua masculinidade. Cada indivíduo deveria poder construir a sua identidade – e rasgar os padrões tradicionais impostos e condicionados pela sociedade – sem ser ridicularizado ou marginalizado.

Texto de Miguel Rodrigues para a revista PARQ 67 Outubro de 2020